Pessimismo é um luxo para ricos

Todos nós precisamos ajustar o rumo da vida num determinado momento. Viajamos através da vida e muitas vezes tem-se a noção de ‘não estar cabendo’ onde estamos ou “não pertencer” a um grupo de pessoas com as quais nos associamos. Como se estivéssemos um pouco fora de vida, espiando uma existência que não se coaduna com o que somos.

As chances são, de que todos já nos sentimos assim e não há absolutamente nada de errado em ter este tipo de sentimento de estar perdido num tempo e num espaço que não são familiares. O sinal de desconforto é apenas um sinal de que chegou a hora de promover mudanças na vida. Mia Couto, um extraordinário escritor Moçambicano, ao ser convidado para fazer o discurso da “Sapiência”, para uma turma de formandos, exaltou a nossa dificuldade de pensarmos em nós mesmos como sujeitos, como ponto de partida e como destino dos nossos sonhos. Falou que temos sete sapatos sujos, que precisamos descalçar e deixar na soleira da porta, ao adentramos o mundo que queremos ter.

O primeiro sapato é o da desresponsabilização. A velha ideia de que os culpados são sempre os outros e nós, as vítimas. Se quisermos algo, temos que construir e parar de olhar para nós mesmos com benevolência. O segundo sapato traz a ideia de que o sucesso não depende do trabalho e sim de forças invisíveis que comandam nosso destino. O êxito é sim, resultado do esforço do trabalho a longo prazo.
O terceiro sapato é o preconceito de tratar quem critica como inimigo. A intolerância desencoraja o espírito crítico e faz com que muitos debates de ideias sejam substituídos por agressões verbais, que demoniza quem pensa diferente. No quarto sapato, a ideia de que mudar as palavras, muda a realidade. Temos produzido discursos de ordem cosmética e que privilegia o superficial.

O quinto sapato é a vergonha de ser pobre e o culto das aparências. Vivemos num palco de representações, onde um carro, não é mais um objeto funcional. A arrogância e o exibicionismo são emanações de quem troca o conteúdo pela embalagem, mas já houve tempo em que éramos medidos pelo que fazíamos e não pelo espetáculo que somos capazes de promover de nós mesmos. O sexto sapato, a passividade diante da injustiça. Só denunciamos injustiças quando praticadas contra nossa pessoa, nosso grupo, nossa religião.

Estamos menos dispostos a denunciar quando a injustiça é praticada contra os outros e não nos afeta diretamente. O sétimo sapato é da imitação e da ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros e que só temos que manter a identidade naquilo que é folclórico. Em outras palavras, só somos modernos se copiarmos o estilo de vida dos americanos. Mia Couto provoca os políticos, a cultura herdada e nunca recriada, mas provoca sobretudo as pessoas que não sabem reinventar seu universo e se debulham às lamúrias. Os sete sapatos sujos não são frutos do imaginário do moçambicano, é a realidade escrita, questionando modelos de pensamentos que nos aprisionam a um cartão de visitas cheio do que não somos.

Tolerância, a maior virtude da democracia

Devemos buscar outras causas para a violência do que atribuí-las à religião. O terrorismo é a velha prática política de grupos radicais que recorrem à atos bárbaros contra pessoas ou coisas simbólicas, para provocar o terror, com ações que tem a priori o papel de vingar e atingir o centro de um poder. Os grupos radicais fazem dos atos de violência contra civis o principal instrumento de suas lutas. A ação terrorista supera os limites ideológicos, religiosos e não reconhece os limites territoriais, além disso, os extremistas quase nunca representam a totalidade da comunidade da qual fazem parte. O que parece claro é que seja quem foi o responsável pelo atentado na França, tentou-se uma jogada conhecida de atrair propaganda e apoiadores para o ato de selvageria. Violência não tem justificativa, embora possa ter causas.

É absolutamente repugnante e condenável qualquer violência praticada contra um ser humano, levando-se em conta que por ser humano, entende-se um ser revestido de pensamento, vontade, fé e liberdade. As razões, as provocações fazem parte do jogo democrático, da liberdade de expressão gozada pelos cidadãos franceses, até que os limites éticos da tolerância foram testados. Aí, a diferença cultural, a cultura do oriente e do ocidente se estranharam de forma traumática. A França, que foi o berço da cidadania moderna e desde a Revolução Francesa (1789) alimenta a tradição de idéias universalistas, que orgulha os franceses e seduz os estrangeiros, está confusa e busca entender como pôde o movimento jihadista penetrar e perfurar o posicionamento da sua cultura política de separação entre Igreja e Estado. Isto torna o ato terrorista um acontecimento mais chocante e perturbador.

Os estudos sobre a paz e conflitos tem ocupado minha mente. Não devemos cair em retrocesso civilizacional, não devemos limitar a liberdade, o pluralismo dos direitos, a democracia, pois que não é a diversidade de opiniões, mas a recusa da tolerância com os que tem origem, opinião e crença diferentes, que tem dado origem a maioria das guerras. É verdade que esses horrores não mancham a face da terra todos os dias, todavia, tem sido freqüentes. Como parar estes grupos terroristas? Como fazê-los entender que a ninguém é facultado o uso da espada para forçar os homens a adotar determinada fé, ou proibi-los de praticar outra religião? Como desmontar a bomba armada sob o pretexto de que a violência é um círculo que se repete infinitamente? O outro lado da moeda é reconhecer que a tolerância política e religiosa é maior virtude da democracia moderna.

Voltaire, o mais expressivo filósofo francês do período do Iluminismo, escreveu em O Tratado sobre a Tolerância, 1763: “Digo-vos que é preciso olhar todos os homens como nossos irmãos. Como! meu irmão, o turco? meu irmão, o chinês? o Judeu? o siamês? – Sim, sem dúvida. Não somos todos filhos do mesmo pai e criaturas do mesmo Deus? Possam todos os homens lembrar-se que são irmãos”

O fluxo da existência

Talvez apenas aqueles que entendem o quão frágil a vida é sabem o bem precioso que ela representa e como é importante levá-la a sério. Levar a vida a sério não significa gastar toda a energia meditando, categorizando e classificando nossos atos. Temos que trabalhar e ganhar a vida, mas não devemos ficar entalados numa existência metódica, sem qualquer ponto de vista do significado mais profundo da vida. Nossa tarefa é encontrar um equilíbrio, buscar um caminho do meio, para aprendermos a não nos doarmos em atividades estranhas e preocupações fúteis, mas para simplificarmos nossas vidas cada vez mais.

A chave para o equilíbrio da vida moderna é a simplicidade, viver com o que é  necessário e justo, apostar nos relacionamento humano, no conhecimento que traz a libertação, na calma diante das adversidades. Assim como as rochas que ao serem chicoteadas pelas ondas, não sofrem nenhum dano, mas são esculpidas em belas formas, nossos personagens podem ser moldados, podemos aprender com as perdas e decepções, que devidamente compreendidos, podem vir a ser uma fonte inesperada de força interior. Fortes ou fracos a nossa existência tem sido tão transitória como as nuvens no verão. Tudo muda e por esta razão podemos assistir nascimento e morte, dia e noite, sol e chuva e  qual dança de formas transitórias num mesmo dia,

Viver exige compartilhamento, conhecimento e esforço. Não é uma mera sensação agradável, uma experiência, que é uma questão de acaso, e sorte, tampouco um filme de histórias de amores felizes e infelizes. Não caia no erro de achar que viver bem é esbaldar-se em consumo e felicidade, na m estar na moda e posar de bem sucedido para influenciar as pessoas. Não! Até porque o que especificamente torna uma pessoa atraente independe da moda da época. E para tornar-se um mestre na arte de viver é preciso estudar a teoria e praticar e nada no mundo pode ser mais importante que esta arte. Talvez aqui tenhamos falhado. Nossa cultura enumera quase tudo como mais importante do que aprender a arte de viver e amar.

Eduardo Galeano num belo ensaio diz que somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos. Diz que vivemos em plena cultura da aparência, onde o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus. Tem sido mesmo assim? Enfim, o choque entre transitoriedade e relações duradoras, passado e futuro, vida séria, vida fugaz, o que somos e o que fazemos, produz um comportamento que parece o de uma sociedade que celebra distrações estéreis, que passam longe da verdade.

O cacique e seu labret

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No universo Xinguano o velho é dono da história; o homem, dono da aldeia; e a criança, dona do futuro.
Neste momento em que cabe-me um breve exercício de retrospectiva e planos, as histórias que ouvi nas viagens ao Xingu, seguramente são as que mais produziram mudanças no meu estilo de vida. Dalí extraí a essência do que tenho sido, o alimento que purifica meu coração, o olhar carinhoso que acompanha a curva do rio onde os espíritos se banham.

Ao longo de 12 anos, o encantamento abrandou-se e cedeu lugar a uma convivência respeitosa. Meu mestre é o grande chefe Aritana Yawalapiti, que reorganizou politicamente seu povo inúmeras vezes, quando vencidos por invasões ou doenças. Alí aprendi sobre seus símbolos míticos, sobre fabricação dos corpos dos guerreiros, que as escoriações feitas no corpo são necessárias para que o sangue fraco seja eliminado antes das lutas, aprendi sobre respeito eterno aos mortos, a confiança no poder de cura dos pajés e aprendi sobretudo que as crianças são entidades intocáveis. Não há de se zangar com as crianças.

Movida por essas lembranças, recebi com alegria o cacique e pajé Raoni Metuktire, líder Kayapó, da terra indígena Kapot-Jarinã, na cerimônia de posse do governador Pedro Taques e eu que transito nos dois mundos ali constituídos; cerimonialista pública e estudante de Antropologia não entrei em conflito, quando o cacique quis se manifestar.
Ali estava ele, portando o habitual labret no lábio inferior, (um ornamento concedido aos guerreiros prontos para morrer por sua terra), revestido de sua autoridade de líder de uma nação indígena reconhecido no mundo inteiro, com sua cultura e seus protocolos, a seu tempo e hora. O cacique Raoni não “roubou” a cena. Fora convidado pelo governador e, portanto, estava solenemente dentro do cenário da posse.

De tudo sempre fica a certeza, de que o índio, o meio que ele vive, a cultura imaterial e espiritual se harmonizam com o Mato Grosso indivisível, majestoso e imponente, como disse Orlando Villas Bôas. O movimento de integração entre índios e brancos viveu outros momentos solenes, como em 2004, quando tive a honra de organizar a transferência oficial do governo para o Parque Indígena do Xingu. Todo staff governamental e chefe do Poder Legislativo estabelecidos na aldeia Yawalapiti.

O cacique Aritana, falando em aproximadamente 9 idiomas indígenas, intermediava a conversa. Alí sentados no chão da Casa dos Homens, vimos Mato Grosso ser governado a partir do Parque Indígena do Xingu.
Se a mim, como mato-grossense cabe um pedido ao novo Governador, eu aponto para o Xingu, a mais importante reserva das Américas e peço um olhar carinhoso para a questão indígena e com segurança digo que é no Xingu que pulsa o coração desse inigualável estado e que é plenamente possível conciliar interesses econômicos e preservação das áreas indígenas, viver a nossa contemporaneidade e respeitar a identidade e cultura deles.