A encenação dos conflitos

Voce já ouviu falar do Dzi Croquettes?

Um grupo de jovens estudantes talentosos, coreógrafos, dançarinos e rebeldes, que revolucionou a cena teatral brasileira, usando uma filosofia libertária e linguagem escrachada para contestar as instituições e os políticos brasileiros, com humor anárquico. Na verdade, todos os atos do grupo eram políticos e direcionados à puxar outros jovens para o engajamento contra as proibições e perseguições nos temidos anos do regime militar no Brasil.

O Dzi Croquettes falava da repressão sexual, dos valores familiares, da política, da censura, sem ater-se aos critérios tradicionais de classificação, pois até o contrário, não queriam ser categorizados e reconhecidos como homens, mulheres ou travestis. Queriam ser reconhecidos como seres humanos.

O movimento do grupo, todos homens barbados, vestidos de mulheres, considerados indivíduos fora do esquema contaminou uma geração e influenciou pessoas a ter coragem de arriscar, derrubar velhos conceitos e mudar, embora para o sistema, tenham sido considerados seres ameaçadores, transgressores e subversivos. Usavam figurino androgene ou a nudez como palavras que não podiam pronunciar, dançavam de corpos colados, se abraçavam, encenando as desgraças que o povo brasileiro vivia e em alguns episódios tentavam romantizar a dificuldade que o povo brasileiro enfrentava para se expressar em meio às restrições do regime.

Nos anos de ferro da ditadura militar, o grupo foi salvo pelas máscaras e pelo deboche da realidade que feita e vigiada, não podiam mudar. O movimento durou uma determinada fase da história, um período transitório, mas a trajetória do Dzi Croquettes retratou com extrema força um momento eloquente, onde os indivíduos utilizaram-se de todos os artifícios disponíveis à época; figurino, máscaras, pinturas e texto para expressarem-se rebeldes e engajados, encenando as crises de suas próprias vidas.

A arte, a criatividade, foram utilizadas como antídoto ao terror e ao recorrerem aos disfarces, o grupo criou um ambiente favorável de subversão à ordem, representação da moralidade aberta contra as regras de fachadas dos grupos estruturados no poder.

Penso como seria valioso uma performance do Dzi Croquettes para balançar as estruturas da falsa moralidade ao encenar as coisas absurdas que são feitas e reeditadas ao gosto de políticos retrógrados que se acham até no direito de desenhar o modelo de família que devemos ter. Parece deboche o relatório todo atrapalhado da Comissão Especial que discute o Estatuto da Família no Congresso brasileiro, que foi aprovado semana passada, numa tentativa de substituir a Constituição pela Bíblia, como disse um parlamentar.

É preciso saber nadar

São tantas as travessias

Mares revoltos

Fronteiras fechadas

Arames farpados

Homens armados.

É preciso saber nadar

Para não morar no fundo do mar!

Barcos precários, ondas gigantes

Medo gritante

No peito  angustia cortante

Mãos que escorregam, corpos escapam

A vida, a morte no mesmo instante.

É preciso saber nadar

Quando nada mais vale o lar.

Milhas de sonhos distantes

Bombas explodem no horizonte

Querem que fiquemos

Inertes e pequenos

A mercê dos homens armados

bravos soldados!

Crise de confiança

É uma simples constatação que vivemos tempos complexos, com mal-estar generalizado pela falta de solução para toda sorte de problemas econômicos e sociais, que se estendem muito além da política. Vivemos a maldizer a crise que se instalou por aqui e nos golpeia ora o bolso, ora o estado de animo.

Todavia, a democracia nos dá a esperança de que os problemas com a corrupção, o desarranjo econômico e social são apenas uma fase passageira e a qualquer momento tudo ficará bem novamente.

Estudiosos têm debatido a redução da confiança nas instituições governamentais brasileiras e acreditam que a falta de confiança não é apenas do povo com relação ao governo, mas do próprio governo, em relação as próprias tomadas de decisões. E a falta de confiança é a causa da letargia do momento.

O Brasil, um dos maiores e mais populosos países do mundo, é uma terra diversificada e contraditória, marcada por fortes disparidades sociais. Apesar do real declínio da pobreza, o país tem sido moldado pela exclusão social de uma grande parcela da sociedade e pelas diferenças regionais absurdas, que  faz parecer que há vários países dentro do Brasil.

O governo tenta ser capaz de cumprir a promessa de mais justiça distributiva e mais investimento no bem-estar social, porém, segundo creem os economistas, embora o Brasil seja um caminho viável e positivo, continuará enfrentando tarefas e desafios difíceis nos próximos anos.

Há também um crescente reconhecimento de que promover pequenas alterações no sistema atual não é suficiente e que precisamos repensar fundamentalmente um novo modelo de governar o Brasil. Outra área do governo que  precisa de reforma, é a área da transparência e informação.

É bom que o governo esteja sob o impiedoso holofote da mídia, pois isto significa, enfrentar pressão e se virar para mostrar as providencias que estão tomando. Maior transparência leva não só a melhoria da governança, mas expõe igualmente falhas e sucessos das tomadas de decisões e na implementação de novas práticas políticas.

Apesar das reformas iniciadas, graves deficiências continuam a existir na administração, educação e sistema de saúde. Também do lado negativo é preciso assinalar os gastos indisciplinados. Há notadamente alto nível de pessimismo em termos do que o governo pode fazer para controlar esses gastos e influenciar a recuperação da economia.

O Brasil terá que lutar para estabilizar a progressiva perda de confiança por parte dos investidores internacionais e mais dramaticamente, o ceticismo que está tomando conta do povo brasileiro, quanto a habilidade do governo de encontrar uma solução urgente para a crise.

A falta de confiança na política não é um fenômeno novo; não é que as pessoas tenham perdido o interesse, elas estão cansadas de serem penalizadas.

Chaga aberta

A dramática situação de milhares de pessoas que migram buscando um lugar de paz e sustento para si e suas famílias, está assombrando os líderes políticos mundiais e exigindo de nós, cidadãos, cobrança e posicionamento mais humanizado. Há de haver um meio de tornar digna a permanência dos imigrantes em terras distantes.

A resposta só pode ser global, dada a complexidade dos problemas; o aumento da migração empurrada pela pobreza extrema e pelas guerras e a fragilidade da situação econômica mundial. Em 1985, vários países europeus assinaram o Acordo de Schengen, que estabelece um sistema livre de transito de pessoas e mercadorias de um país para outro sem barreiras e com política de visto comum a todos os países, permitindo que o cidadão de um país membro pudesse circular pelos outros países, sem enfrentar qualquer controle.

Porém, nem  entre os iguais há confiança e acolhimento e o Acordo de Schengen tem sido amplamente discutido, no sentido de permitir que os países membros apertem a fiscalização em suas fronteiras contra os próprios signatários, devido a desconfiança, tensão e atrito entre países do bloco.

Milhares de refugiados estão fugindo de países devastados pela guerra, como a Síria e o Afeganistão, para a Europa. Arriscam suas vidas e quando vencem as tormentas do mar, chegam na Itália, Grécia, Turquia e Hungria, são deixados nas ruas.

É indesculpável que os governos recrudesçam a vigilância sobre suas fronteiras para os refugiados e pobres e falham na indicação de uma política humanitária emergencial. Dentro da União Europeia, a Alemanha tem empreendido um esforço gigantesco para minimizar a situação.

Outros líderes mundiais, em vez de abrir os corações e a pátria para os povos desesperados, que fogem da brutalidade e dificuldades inimagináveis, demonizam e rotulam os imigrantes.

Todavia, muitos destes líderes políticos influenciam e contribuem para a desestabilização do Oriente Médio, Ásia e África, enviando carregamentos de armas e tropas. Enquanto investirem nas zonas de guerra, o mundo continuará a produzir um extraordinário número de refugiados e migrantes nos anos vindouros.

Não mais basta assinalar as causas estruturais dos dramas sociais contemporâneo. Estamos horrorizados e comovidos, tocando na ferida aberta e isso talvez estanque as teorizações abstratas ou indignações não reveladoras da origem de todo esse horror.

É preciso que os povos retomem o direito de serem artífices do seu próprio destino, de caminharem sem tutelas herdadas do colonialismo e sem o jugo do mais forte sobre o mais fraco.

A propósito o Brasil já concedeu mais pedidos de refúgios para os sírios desde que o país entrou em conflito. O número é superior ao de muitos países da Europa, como Espanha e Portugal, aponta a Eurostat, agência de estatística da União Européia.

Olhar indiferente

Os haitianos migram sistematicamente desde o estabelecimento dos governos de Jean-Claude Duvalier, o Papa Doc e depois do filho Baby Doc, para fugir das políticas econômicas recessivas e da opressão política praticada pela família Doc, conhecida pela ganância descomunal, que secou os cofres públicos do já empobrecido Haiti. O país além seu sistema político, era administrado também pela Minustah, Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti, que era muito questionada. Pessoas relatam que a presença da Minustah dificultava o processo de democratização do país.

Em 2010 aconteceu o terremoto e inesperadamente, o Brasil virou destino migratório. Os haitianos começaram a entrar no Brasil pelas fronteiras no Norte do país, principalmente pelo Acre e não param de chegar, conforme constatei sábado passado, durante uma reunião na Polícia Federal. Nem todos os haitianos que têm chegado ao Brasil estavam vivendo no Haiti. Parte do grupo já vivia como imigrante em outros países, como a República Dominicana, Panamá, Bahamas e Estados Unidos. Dizem que a opção pelo Brasil deu-se, sobretudo devido a crescente dificuldade para migrar para países europeus e para os Estados Unidos, onde adquirir documentos para se estabelecer é muito difícil e também porque a mão de obra asiática barata tem suprido a demanda.

O Centro de Pastoral para Migrante é o lugar do acolhimento na chegada, porque depois eles se mudam para outros locais, dividem casas entre amigos. Apontam a comunicação como a mais difícil barreira a transpor, o ponto que dificulta maior interação dos haitianos com a comunidade local, tanto no trabalho, como em atividades sociais. No Haiti, a língua oficial é o francês, mas a maioria da população fala o crioulo haitiano ou créole. Muitos também falam espanhol e  inglês.

Nas entrevistas que tenho feito, são unânimes em reforçar que o espaço social dos haitianos está limitado ao Centro de Pastoral para Migrantes, que oferece acomodação, comida, espaço para reuniões, além de apoio e encaminhamento para que consigam trabalho. Os haitianos estão vivendo entre si. Não tem havido em nível algum, ação voltada para a inserção deles na sociedade cuiabana. O Cuiabano ainda não dignou-se a dar-lhes importância.

Os haitianos que migraram para Cuiabá vivem uma relação em certo grau ainda simbiótica com a comunidade. Carregam suas tradições e culturas, esperando que a qualquer momento os muros se rompam e eles possam participar mais efetivamente da vida social e cultural de Cuiabá. Embora não estejam, por imposição segregados a um espaço físico, a condição econômica desfavorável encarregou-se de fazê-lo. Há vários mini Haitis espalhados pela cidade. E o sentimento predominante entre os haitianos é assim expressado: “Mwen pati kite Ayiti, men Ayiti pa kite’m” (Parti, deixei o Haiti, mas o Haiti não sai de mim).