Crise de que?

A minha capacidade de analisar crises está se exaurindo. São tantas e tão distintas quanto complexas que estou tentada a enxergá-las como um sinal inesperado de esperança do surgimento do diálogo sobre os problemas que estamos enfrentando.

A maioria dos diálogos trazem no seu bojo conteúdos de crises, algumas históricas, que não foram concretamente resolvidas. Simplificaria afirmar que as crises atuais são vertentes da hipermodernidade, da flacidez dos nossos atos e relacionamentos e igualmente dos atos dos governos. Porém sabemos que há componentes mais expressivos e agressivos do que a fluidez do nosso mundo superficial.

O mundo enfrenta a pior crise migratória desde a segunda guerra mundial. Mais de 300 mil pessoas entraram na Europa fugindo da guerra e da fome. Estampa os jornais do mundo inteiro a crise da mudança climática. Mudamos de lugar, mas habitamos o mesmo mundo e aqui, enfrentamos a crise da violência cotidiana, da corrupção e da falta de boas políticas públicas para a saúde e educação.

A crise na educação culminou com a paralisação das Universidades Federais por mais de 4 meses, em protesto contra o sucateamento do ensino público superior. Lendo os jornais locais, aprendi que até uma serra esculpida por pepitas de ouro gera crise. Taí a invasão de garimpeiros em Pontes e Lacerda!

Poderíamos argumentar que a crise maior, da qual várias outras se originam, é a crise moral. E sobre esta bem poderíamos travar longos diálogos com a classe política, empresarial, com a academia e com cidadãos comuns como eu e você, até descobrirmos se não seriam as crises uma possibilidade de levar a sociedade abalada a um novo começo, a melhoria na relação uns com os outros, com a política e com a economia e melhor concepção do conteúdo que nos afeta diariamente.

A razão não nos fortalece contra os males, por isso continuo meu devaneio propondo que as crises poderiam funcionar como uma força intimamente relacionada com a construção do indivíduo e não que sejam absorvidas apenas como adventos malditos, de efeitos nefastos.

Quem sabe, os indivíduos pudessem retomar a construção de suas identidades, livrando-se dos pesos dos cenários de crise e abrindo-se para uma nova proposta de vida. Nasceu o homem para viver em uma contínua aprovação de si mesmo e de tudo o que faz e eu sem saber o que fazer com as crises, estou tentando transformá-las em algo que possa ser positivo. Algumas crises são universais, outras particulares. Porém de todas, pode-se tirar boas lições.

Alegoria do profeta fujão

A Bíblia narra a história de um profeta fujão, chamado Jonas, que recebeu de Deus a difícil missão de ir à cidade corrupta de Nínive e pregar ao seu povo até converte-los e faze-los abandonar as práticas cruéis de governar através do terror e da atrocidade.

Nínive era uma das maiores cidades do mundo, situada à margem do Rio Tigre e próxima do Mar Mediterrâneo. Era a Capital do temido e poderoso Império Assírio. A cidade tinha um aspecto admirável: era circundada por fortalezas imensas, muralhas descomunais e protegida por fossos.

Possuía belos palácios e o portal de acesso à cidade era guardado por colossais leões e touros; era tão grande em iniquidade quanto em riqueza e poder.

Os assírios travavam muitas guerras e Nínive era uma cidade de constante derramamento de sangue.Os ninivitas eram conhecidos pela crueldade com que tratavam os guerreiros capturados, muitos dos quais eram cegados para que não fugissem.

Jonas era considerado um profeta insensível, que não tinha interesse que os homens de Nínive, cruéis e inimigos de Israel se convertessem e fossem salvos. Jonas queria que Deus cumprisse o Seu juízo sobre eles. Por isso não foi para Nínive. Jonas fugiu.

Mudou o roteiro e embarcou para Társis, uma distante cidade, na direção oposta de Nínive. Deus porém, mandou uma tempestade que atingiu violentamente o navio e trouxe um grande temor sobre a tripulação supersticiosa com quem o profeta fujão dividia a travessia.

A tripulação pagã acreditava  que se houvesse uma tempestade  em  uma viagem, isso era indício de que uma pessoa dentro do navio era culpada  pelo infortúnio e que um dos tripulantes estava em pecado com seu  deus. Ao investigar chegaram à conclusão que Jonas era o culpado. Jogaram-no ao mar.

Um peixe o engoliu e o vomitou na praia, três dias depois. Jonas refletiu sobre o compromisso quebrado, sobre a punição que sofrera e levantou-se. Rumou para a corrupta cidade de Nínive, onde pregou conclamando a todos a se converterem.

Deus deu quarenta dias  de prazo para consumar a conversão dos ninivitas,  e num ato simbólico de arrependimento deviam todos fazer jejum, vestir-se de panos de saco e assentar-se sobre a cinza. Os temíveis ninivitas ouviram sómente um profeta e foi o suficiente para cessarem as atrocidades que cometiam. O povo simples de Nínive se arrependeu primeiro. Depois vieram os nobres.

Os habitantes de Nínive foram salvos pelo arrependimento e mudança de atitude de seus governantes. O profeta Jonas ficou ressentido por que Deus não puniu os ninivitas, mas Deus explicou-lhe que haveria de ter compaixão da cidade de Nínive, porque lá viviam muitos animais e muitos homens que não eram capazes de discernir entre o certo e o errado.

E se, um profeta fosse designado a vir ao Brasil com a mesma missão. Fugiria?

P.S. Li que os ninivitas recaíram e novamente seguiram seus caminhos iníquos, até que muitos anos depois, as forças do rei da Babiblonia e de Ciaxares sitiaram e incendiaram Nínive.

Café, pão de queijo e política

Nas divisões das tarefas, as compras quase sempre são tarefas das mulheres, entretanto este artigo reflete sobre as implicações para marcar a distinção social buscada por muitos frequentadores de determinado supermercado de Cuiabá.

Supermercado este, onde uma variedade de relações se estabelecem de forma direta ou indireta e onde obrigações e lazer se misturam numa simbiose interessante.

Ir ao supermercado demanda alguns cuidados e uma certa produção no visual, o que concede ao ambiente a relevância de um lugar, onde as estratégias de consumo são aliadas as estratégias de diferenciação social. Assim, ir às compras é, em sua maior parte, um meio de alcançar determinados fins.

E se todo ato de consumo tem um significado, se as relações entre consumo e política são multifacetadas, ir ao supermercado, além da intenção de se adquirir produtos que satisfazem, pode ser também uma estratégia para consolidar o poder, para abordar, despachar e encaminhar alguma agenda.

Quer encontrar um médico, marcar consulta? Encontrar um político, pedir emprego, criticar algum projeto? Tenta no tal supermercado.

O supermercado em questão é colocado como um lugar onde se estabelece relações recíprocas de cordialidade, mas também de auto afirmação, visto que consumir determinados produtos à vista dos adversários ou amigos  eleva ou nivela o status e ainda que seja a mulher, a protagonista da cena doméstica, os homens, ajustam os horários, enfrentam filas para acompanhar as esposas e  invariavelmente nos cantos ou na adega, falam ao pé do ouvido ou batem papos descontraídos com amigos que executam a mesma tarefa, com a intencionalidade de encontrar uma figura pública difícil de acessar por vias normais.

Muito raramente alguém entra e sai do supermercado sem estabelecer algum tipo de conexão e não há aqui uma análise se isso é bom ou ruim, é a constatação de que o espaço desse supermercado transcende a rotina de suprir a despensa vazia e onde o estilo de vida encontra ressonância num ambiente privado preparado esteticamente para ser um espaço público.

O supermercado surgiu no século XX, nos Estados Unidos, como um novo modelo de comércio de grandes lojas localizadas fora dos centros urbanos, sem atendimento personalizado, com mercadorias expostas em embalagens atraentes, para escolha livre do consumidor.

Essa invenção moderna foi consolidada no Brasil na década de 1970, com a entrada das grandes redes estrangeiras no país, o que alterou significativamente as práticas de consumo dos brasileiros. Ir ao supermercado é parte da organização da vida cotidiana, mas ir ao Big Lar na Avenida Miguel Sutil é um marcador social, onde os encontros entre gôndolas comunicam algo que é impossível não perceber.

Nuvem vazia

Ser vazio significa ser vazio de ego, não ter nenhum pensamento de eu, não no sentido de alguém funcionar como um vegetal ou um animal selvagem – coisas vivas que meramente processam água, alimento e luz solar de modo a crescer e reproduzir-se, mas no sentido de que esse alguém cessa de medir os eventos, pessoas, lugares e coisas do ambiente em termos de “eu” e “meu”.

É como estar na névoa da manhã de um dia ensolarado, ou em uma daquelas nuvens que pairam no topo de uma montanha. Uma pessoa pode esticar o braço e tentar agarrar a névoa, mas, não importando o quanto ela tente agarrá-la, sua mão sempre permanecerá vazia. Ainda assim, por mais seco que esteja seu espírito, a Nuvem Vazia o envolverá com a umidade doadora de vida; ou não importa o quanto seu espírito queime com raiva ou desapontamento, um frescor suave o afagará como o gentil orvalho.

Livro Nuvem vazia, os ensinamentos de  Hsü Yun