Inclinação de ser correto

A moralidade não deveria ser uma questão de obediência às regras. O homem que não rouba porque tem as mãos atadas atrás das costas por medo de cair em tentação e ser pego, não é um homem moral. É claro que a escolha moral não ocorre em um vácuo, do nada, ela ocorre em um contexto específico, onde as ações saudáveis ​​vem acompanhadas de motivações igualmente saudáveis.

Muitos filósofos procuram explicar por que não podemos evitar ser moral. A moralidade, além de ser um conjunto de compromissos ou escolhas, é de fato, a expressão da nossa relação fundamental e inescapável com o mundo, onde nós existimos como seres que se criam juntos e o fato de nos comunicarmos um com o outro, compartilharmos o mesmo mundo, nos coloca face-a-face em pelo menos, aparente contexto.

É o olhar para o rosto do outro que nos recorda de nossas obrigações morais. O rosto do outro é que nos interpela e desperta para a vergonha, para a culpa. Esse conceito lindo do acesso ao rosto é do filósofo francês Lévinas.

Nos tempos pós-modernos, os impulsos morais precisam ser domesticados, embora a maioria dos homens saiba lidar responsavelmente com as consequências produzidas por suas ações. Agir moralmente não significa agir contra a inclinação natural; é o agir inclinado pelo cultivo das virtudes acumuladas.

Isso representa uma aceitação do que mundo moderno tem procurado escapar: da responsabilidade. A responsabilidade moral é o oposto da obrigação de ser moral, o que baseia-se no medo da punição ou em interesses particulares. A responsabilidade vai além do que um homem pode ou não fazer pelo outro. É uma relação de cuidado para com a necessidade do outro.

A moralidade deveria existir misteriosa, inexplicável e incapaz de ser reduzida a um mero seguimento de regras que indicam o que e quando fazer as coisas, onde começam e terminam os deveres, o que naturalmente produz uma limitação na responsabilidade espontânea. Essa concepção frágil de moralidade conduzida e vigiada presta-se para o estado assumir de vez o papel de educador moral, executor e agente fiscalizador para que as regras não sejam quebradas.

O Estado torna-se o defensor da moral e da razão, o que facilita justificar suas ambições infinitas. Porém, nos estudos sobre a moral contemporânea, grande parte das teses promovem o desmascaramento dessa utilização do poder do Estado como sendo necessário.

Mas, por fim, não há uma sociedade perfeita, os indivíduos não são perfeitos, a moralidade é muitas vezes, contraditória e a incerteza sempre nos acompanhará. Mas vale agir correto, mesmo que seja para acalmar a ansiedade moral e existencial e para obter respostas às indagações diante de quadros incompreensíveis do comportamento humano.

A moralidade da qual falamos é o que todo ser racional deveria escolher. Porém, como muitas outras virtudes, quanto mais dela se necessita mais dificilmente está disponível.

A vida é o que sempre foi

Entre roubos, arroubos, frouxidão, delação, prisão, estamos encerrando mais um ano, numa conjuntura inquietadora, cheia de angústia, num estado de expectativa e de demora para o desfecho do momento político impregnado por fatos e atos estéreis.

O que há? Há um torneio de palavras disputado por juristas eruditos, que num choque de palavras, como uma brincadeira que causa um misto de terror e contentamento, propõe o impedimento da presidente, para ser julgado por uma corte rasa que, com pouquíssima exceção, concentra sua energia em negociar vantagens e escapar de suas próprias armadilhas.

Mas a intervenção no poder político é salutar quando o povo assim o quer. É com esse olhar turvo de incerteza que terminamos o ano. É provável que essa perspectiva de sombras afete nossos relacionamentos, a paz interior. Mas nós, pessoas sem glória, temos a chance de gesticular e extravasar a indignação, a aflição e apesar da modéstia, com argumentos obstinados, podemos declarar que vida não é apenas aquilo que se extrai no choque do poder e que o poder pode ter efeitos múltiplos que não seja escândalos nem a aniquilação da esperança.

Mas veja o empobrecimento e a desordem do ensino! Não são mais capazes de conter a sã rebeldia dos nossos adolescentes, que tiveram que furar bloqueios policiais, alcançar a rua e pedir apoio para que não fechassem escolas. Em parte, ao menos o cotidiano não apresenta grandes mudanças. As relações revestidas de imagens prematuras vão se estabelecendo pelo poder, se desfazem e se reconstituem em outra dimensão não muito diferente desta.

O poder vai ser sempre alimentado pela ira e pelas vilanias. Porém é sabido que toda generalização é perigosa. Não se deve colocar todos no mesmo saco.. Há tanta injustiça quanto compaixão, tanto drama quanto frustração, tanto amor quanto dor. Mas é tão difícil perceber as exceções!

Sobre tudo isso se ouve discursos inflamados, disputas públicas e muitas conversas secretas. Resolver? O que? Se cessa esse murmúrio do impeachment, logo começa um outro. Mas, dia virá em o poder será exercido no nível da vida cotidiana, onde o que vale pode ser visto e dito em meio a pequenos gestos, humildade, gentileza e honestidade, virtudes que enriquecem a vida e melhoram os homens.

Entretanto, enquanto não atingimos esse nível de civilização, a ceia do homem comum é um diálogo com o que ele passa durante o ano todo: bebedeira, violência, desentendimento dos casais, arrependimento, promessa e espera.

Esta retórica queixosa é meio típica de final de ano, assim como a contraditória esperança de que viveremos dias melhores no próximo ano.