“O que é um homem sem qualidade? É um nada. E esse é o problema. Há milhões assim. É essa a raça que nossa época produziu. Algo imponderável como uma orquestra que desafina e não por falta de talento apenas. É que falta tudo”, escreve Robert Musil no livro desconcertante sobre o homem em sua condição terrena envolto na absoluta falta de valores morais, intitulado “O homem sem qualidades”.
O romance traz personagens vivendo relações autênticas, sem emoção ou sentimentos positivos, substituindo a inspiração pela intuição e nos confronta com comentários irônicos que tentam mostrar à fragmentação e à dissolução dos valores éticos na modernidade.
Trata de seres que colocam o mundo cotidiano em suspensão, deixam aberto suas naturezas esquivas, aproveitam-se da situação política, dos revezes econômicos, da desigualdade e da irracionalidade como condição para disseminar a moralidade falsa, julgamentos e comentários incapazes de exprimir a menor compaixão ou respeito pela vida do outro ser humano.
De toda parte, o homem está se preparando, de maneira cada vez mais disforme para exercer na plenitude a espessa capacidade de ser vil, de pronunciar palavras cujo significado talvez até desconheça, mas é preciso impressionar, que seja negativamente, mas impressionar.
É incômodo conviver com pessoas que zombam de tudo, que conseguem fazer piada com a dor alheia, que politizam até os mortos e seus velórios, que entram em transe diante da possibilidade de explorar as veias do mal, pronunciando discurso de ódio, principalmente na internet.
Ao ler o homem sem qualidades, pensei que ao nascer desprovido de sentimentos bons, o homem poderia esforçar-se para adquirir certos valores morais ou espirituais de forma a amansar o ímpeto selvagem que lhe compele a cultivar espinhos no coração.
As manifestações destemperadas não mais típicas da arrogância da juventude, dos espíritos afoitos, são usadas a bel-prazer por gente de todas as idades.
É difícil combater os homens sem qualidades com ideias singulares, com filosofias humanistas. Tampouco se consegue adivinhar a profissão dos homens sem qualidades porque eles estão em toda parte; são médicos, comerciantes, artistas, políticos e professores, para quem nada é sólido; ficam zangados e zombam, se entristecem, rejeitam o que os comovem.
Sem sentir, assim como na água, estamos nadando num mar de fogo, onde o mesmo acontecimento tem muitos lados e a mesma relação tem um monte de sentimentos transversos entre o bem e o mal.
Pelejo para ampliar minhas qualidades, cobro-me exaustivamente para adquirir novo modo de pensar mais humanizado e com respeito pela vida do outro. Erro seguidamente. Entre remorso e fraqueza sinto que não quero repartir minha existência com pessoas sem qualidades e ainda dotados dessa monstruosa mistura de insensibilidade e indiferença que tem permeado as nossas redes de relacionamentos.