Pobreza compartilhada

Em novembro de 2020, o IBGE divulgou que 13,7 milhões de brasileiros vivem em situação de extrema pobreza. Para este ano as perspectivas são igualmente desanimadoras, a demora na vacinação, economia estagnada, aumento de desemprego e alta taxa de pobreza desestruturaram as bases sociais e econômicas do Brasil e o índice de desemprego atingiu a marca de 14,2%, a maior taxa já registrada desde 2012.

No contexto global, a pandemia e a recessão por si já colocará 1.4% da população mundial em situação de extrema pobreza. Segundo dados do Banco Mundial, é seguro afirmar que a pandemia teve e tem efeito crucial na elevação da taxa de pobreza. Estas informações estão no relatório Pobreza e Prosperidade Compartilhada, publicado em outubro do ano passado.

O relatório reforça que os novos pobres gerados pela Covid-19, serão sobretudo de países que já apresentam taxa alta de pobreza em sua população. Os dados apresentados pelo Instituto Data Favela, dedicados a analisar os impactos sociais da pandemia de Covid-19 nas favelas brasileiras, destacam que 68% dos entrevistados não têm dinheiro para comida.

A migração é apontada como um meio efetivo de tirar o indivíduo da pobreza e em que pese todas as dificuldades mencionadas acima, grandes grupos fazem travessia rumo ao Brasil, buscando uma vida preenchida com acolhimento e emprego, apesar de haver mais brasileiros no exterior do que estrangeiros vivendo no Brasil.

Os haitianos migraram para Cuiabá em números assustadores, quase 4.000 pessoas, entre 2011 e 2016 e o que encontraram não foi uma situação favorável ao estabelecimento de uma vida confortável em Cuiabá. Muitos homens, com bom nível de escolaridade, foram levados para empregos na construção civil, o que lhes garantia a subsistência e nenhuma economia para trazer a família que fora deixada para trás. O haitiano tem tradição na cultura migratória, quase a totalidade dos que vieram para Cuiabá, não estavam vivendo a primeira diáspora.

Transformados em seres invisíveis, sem contar com política pública de integração social e cultural, não tiveram opção senão conviver entre si, em pequenas comunidades estabelecidas em bairros periféricos de Cuiabá. Por esta razão, quase metade desistiu de Cuiabá.

Estamos vivenciando um novo fluxo migratório, bem menor e mais visível, porque as famílias estão nas rotatórias de Cuiabá. Com o agravamento da crise econômica e social na Venezuela, o fluxo de cidadãos venezuelanos para o Brasil cresceu muito nos últimos anos. A maioria dos migrantes venezuelanos não tem cultura migratória e devem ter partido para uma diáspora temporária.

O Centro de Pastoral para Migrantes de Cuiabá, a Casa do Migrante é a referência que o migrante tem no sentido do primeiro acolhimento, da iniciativa de documentação, do encaminhamento para o primeiro emprego, está com hospedagem reduzida devido a pandemia e também porque a procura tem diminuído desde que a maioria dos cidadãos venezuelanos que estão em Cuiabá, fazem o movimento migratório circular enquanto aguardam mudança na situação econômica e política do país, para retornarem.

Algumas pessoas abrigadas na Casa esperam que o poder público local dê-lhes passagem para que possam partir para outro destino, dentro do Brasil, onde vivem outros membros da família. Os estrangeiros abrigados na Casa do Migrante cumprem regras quanto a permanência no local e são proibidos de pedir esmolas nas ruas.

O governo brasileiro tem feito trabalho de convencimento para que os refugiados em Roraima se movimentem voluntariamente para outros estados, por isso estamos convivendo com cenas de famílias inteiras, expostas ao sol, com crianças pequenas e de colo, no cruzamento de ruas com grande movimento de veículos. Estão vivendo como pedintes, arrecadam certa quantia de dinheiro, compram passagens e seguem em suas diásporas errantes, sem nenhuma estratégia para vencer o estranhamento que os separam das sociedades locais.

A sociedade local? Atira-lhes moedas.

Nunca mais sem nós

Com população estimada em 18 milhões de pessoas, o Chile vai se tornar o primeiro país do mundo a ter a constituição escrita por mulheres em número igual ao de homens. O plebiscito aprovado em 20 de outubro do ano passado, previu a eleição de um grupo de 155 cidadãos especialmente eleitos para serem membros da Convenção Constitucional, com cotas para garantir a diversidade e equidade. Isto parece proposital para diminuir a influência da elite política, dominada basicamente por homens e dar voz as mulheres, no futuro.

Ou seja, os chilenos terão uma Constituição elaborada por um grupo formado por 50% de mulheres. Será a primeira do mundo, a primeira de todos os tempos, a primeira de muitas, esperamos que sirva de modelo para a América Latina!

“Nunca mais sem nós”, foi o grito de demonstração de força das mulheres chilenas que ecoou pelo país em atos de protestos desde 2019. As mulheres têm sido a força progressista na campanha por mudanças no país, afirmando que a constituição atual não as representa nem garante a elas igualdade.

E as conquistas começaram a acontecer depois que vários comícios feministas foram organizados para protestar contra feminicídios, violência em geral contra as mulheres, mas não apenas isso, protestavam também contra o que consideravam desinteresse do estado para debater o tema e enfrentar o problema e investir numa política pública que pudesse fornecer estrutura legal para proteger a vida das mulheres. O movimento feminista chileno assumiu o protagonismo nas manifestações, aliaram-se direita e esquerda e pressionaram a classe política, que sem alternativas, apoiaram a convocação do plebiscito.

Semana passada, as eleições confirmaram os 155 cidadãos constituintes, representantes de todas as regiões do país, eleitos por um período de dois anos, que terão a responsabilidade histórica de escrever a nova constituição, instruída a fazer história na igualdade de gênero na política. Foram eleitos muitos convencionais sem nenhuma vinculação com partidos políticos ou coalizão, um recado claro que a força política tradicional não está sintonizada com o discurso e vontade do cidadão.

Pelas entrevistas lidas, a maioria dos chilenos celebram a vitória do plebiscito, a eleição dos cidadãos que irão escrever a constituição e veem nessa conquista uma oportunidade para reparar as desigualdades sociais e o estabelecimento de política de maior reconhecimento a história dos povos indígenas. No contexto do avanço da participação das mulheres na política, é extremamente poderoso e contagiante o grito das mulheres chilenas.

Ao ler sobre o protagonismo das mulheres chilenas, foi impossível não trazer a lembrança o ano de 2014, quando tive a imensa alegria e responsabilidade de organizar a vinda da Presidente do Chile, Michelle Bachelet a Cuiabá, para a abertura dos jogos da Copa do Mundo. Visita a Embaixada do Chile, visita de encarregados da missão diplomática do Chile, escolha do cardápio para o almoço oficial, convidados, carta de vinhos.

Preocupação de outros, a segurança, a estrutura de veículos e a entrada da Presidente na Arena Pantanal para o jogo de abertura Chile & Australia. A equipe de segurança da presidente nos interpela e alivia a tensão dizendo que a presidente não entraria por nenhuma porta especial destinada a autoridades. Ela chegaria na Arena Pantanal no ônibus com os jogadores da seleção chilena.

A chegada da Presidente redobrou a admiração. Sorriso farto, gestos largos, fala alta, rodeada de crianças pobres, que escolhera para fazer parte da sua comitiva oficial. Uma mulher inspiradora! Médica pediatra, mulher separada que criara sozinha 3 filhos, duas vezes Presidente do Chile, foi Diretora da ONU para questões das Mulheres e atualmente é alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos.

Os desafios de um novo normal

Penso que pessoas expostas à mudanças radicais de comportamento durante um longo período, acabam mudando. Quando se abalam as bases de suas referências sociais os indivíduos mudam de lugar, adquirem outros horizontes e a vida segue. Nós somos incrivelmente capazes de nos adaptarmos a qualquer tipo de situação, não importa o quanto seja ruim.

A ansiedade pode perdurar e mudar profundamente a forma como as pessoas interagem umas com as outras por muito tempo, não creio que seja para sempre. 

É provável que as viagens continuem restritas, especialmente porque as sociedades que controlaram a contaminação por Covid-19 em sua população procuram impedir que novos casos surjam e estão fazendo a opção por manter as fronteiras seletivamente fechadas, como é o caso da Austrália, que no momento ainda mantém a opção pela não vacinação de seus residentes, devido ao baixíssimo número de casos. O país, há meses retomou a vida de antes, não   há obrigatoriedade sequer do uso de máscaras e os grandes eventos estão autorizados.

Pode haver momentos e lugares onde as restrições estejam diminuindo, seja porque os casos diminuíram localmente ou em resposta a pressões políticas ou econômicas, como é o caso do Brasil. Mas enquanto o vírus persistir em algum lugar do mundo, a ameaça de novos surtos e o retorno ao bloqueio de fronteiras permanecerão.

O trabalho remoto e as reuniões virtuais, o impacto mais óbvio da pandemia, provavelmente continuarão firmes e a volta das reuniões presenciais, palestras e cursos se darão de forma controlada. As viagens a trabalho foram sensivelmente reduzidas e adaptadas para reuniões virtuais e assim devem permanecer.

Muitos consumidores descobriram a conveniência de comprar on-line. Em 2020, a participação do comércio eletrônico cresceu até cinco vezes mais do que a taxa antes da COVID-19. Muito provavelmente grande parte das pessoas que eventualmente compram on-line durante a pandemia, continuarão a fazê-lo quando as coisas estabilizarem.

São múltiplas e notáveis as transformações em curso e uma visão quase universal é que a relação das pessoas, não todas, com a tecnologia se aprofundou e aprofundará mais à medida que segmentos maiores da população passarem a depender mais de conexões digitais para o trabalho, educação, saúde, compras e interações sociais.

Aqui estamos falando de uma classe privilegiada que pede comida por aplicativo, participa de Lives, assiste aulas on-line, faz compras virtuais, entretanto, a sociedade não é única, desdobra-se em grupos, classes, nem todos vivemos no mesmo tempo. A pandemia está testando a resiliência das comunidades em todo o mundo, exacerbando as desigualdades existentes, tornando visível aqueles para quem o mundo virtual não existe ainda, aqueles que carregam em si um passado de pobreza que nunca muda.

De toda forma, embora não seja suficiente, uma rede de solidariedade foi ativada através dos auxílios emergenciais, presenciamos mobilização para conseguir internação para pessoas em estado grave, uma rede de solidariedade correu a noite tentando comprar uma medicação de alto custo, arrecadação de alimentos para famílias cujo provedor estava infectado, solicitação de adoção de animais de estimação cujo dono faleceu de Covid-19.

Embora a pandemia seja causada por um vírus, as desigualdades realçadas neste período tem causas socias, cuja discussão tem sido sempre postergada. Não será diferente no momento pós pandemia.