Amizade, inimizade e política

No comovente ensaio ‘Inimizade e Amizade’ publicado no livro Encontro, o brilhante escritor checo Milan Kundera, conhecido pela obra-prima “A Insustentável Leveza do Ser”, relata seu encontro com um romancista e amigo, que o convida para conversar e passa todo o tempo falando mal de outro poeta, com o qual havia desenvolvido irremediáveis diferenças políticas. Ao fim, Milan Kundera adverte: “Em nosso tempo, as pessoas aprenderam a subordinar a amizade ao que se chama de convicções. É preciso muita maturidade para entender que a opinião que defendemos é apenas a hipótese que defendemos, necessariamente imperfeita, provavelmente transitória, que apenas mentes muito limitadas podem declarar ser uma certeza ou uma verdade. Ao contrário da lealdade pueril a uma convicção, a lealdade a uma amizade é uma virtude, talvez a única virtude, a última que resta. Hoje eu sei: na hora do balanço final, a ferida mais dolorosa é das amizades feridas e nada é mais tolo que sacrificar uma amizade pela política”.

Amigos não são pessoas iguais, não compartilham tudo. O que não se pode deixar acontecer é que divergências se transformem em mal entendidos ou que o descaso ou esperneio com argumentos contrários, transformem o que poderia ser uma boa conversa, em dois monólogos acontecendo ao mesmo tempo.

Períodos pré-eleitorais são propícios para se observar esse fenômeno: de amizades que incendiadas pelas discussões polarizadas sobre política, se transformam em estranhamentos e inimizades. Não é difícil perceber, no destravamento de língua causado pelas mídias sociais, as provocações, intimidações e bloqueios de pessoas que expressam opinião divergente quanto a um ou outro candidato ou partido.

Ouvir opiniões políticas divergentes estimula o pensamento crítico. Cercar-nos de uma pluralidade de pontos de vista não significa que temos que aceitar todos eles. Mas nos ajudará a permanecermos flexíveis, críticos, a termos a mente aberta e a sermos humildes.

Pessoas com perfis progressistas são atacadas e também atacam porque ambos os lados, progressistas ou conservadores não encontraram o tom para as discussões sadias, para a convivência tolerante. Ao negar a si mesmo o acesso interessado a diferentes pontos de vista, você corre o risco de se isolar e perder ensinamentos preciosos e diversos sobre política. Se o amigo à sua frente estiver realmente errado, fazer as perguntas certas pode fazê-lo repensar o argumento.

Creditar mérito apenas às suas ideias, odiar os outros por suas opiniões e considerar as pessoas com diferentes pontos de vista como menos merecedoras de credibilidade, faz exatamente o jogo perverso da política polarizada, que é silenciar uns para dominar o espaço público dos debates.

É uma pena que estas discussões causem rupturas permanentes e tão desnecessárias entre amigos e conhecidos. Há pessoas que reorganizam seus relacionamentos pessoais para a eleição e imaginam que estão assumindo o controle de suas vidas, desfazendo-se de amigos para abraçarem pautas politicas e correligionários temporários.

Tem também o outro lado, pode ser que ao se abrir uma discussão sobre política com alguém considerado amigo, você entra em estado de choque porque a verdadeira face, de argumentos racistas, discursos de ódio, homofobia venham à tona. Pode ser que você não tenha reparado antes nas piadas grosseiras, mas esse comportamento estava lá o tempo todo. Faltou prestar atenção.  Não combina com a política, que é ciência ser discutida em meio a tantas certezas e paixões, recortes ácidos e intimidação.

Quanto a amizade, voltemos a Milan Kundera: “No meu dicionário de descrente, apenas uma palavra é sagrada: amizade”.

Com o estado se tem a desigualdade

Eu concebo que existem dois tipos de desigualdade entre a espécie humana; um, que chamo de natural ou físico, porque é estabelecido pela natureza, e consiste em diferença de idade, saúde, força, as qualidades da mente ou da alma e outro, que pode ser chamado de moral ou política da desigualdade, porque depende de uma espécie de convenção, e é instituída, ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Jean-Jacques Rousseau, no ensaio intitulado “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, publicado em 1755.
Para Rousseau é impossível ser, verdadeiramente livre, onde impera a desigualdade. A questão primordial é quanto à desigualdade moral ou a política da desigualdade, que, em seu pensamento, deve ser afastada, combatida, porque corrompe as pessoas, porque dela nasce a diferença de poder, de riqueza e isso é inaceitável.

Quando se fala em desigualdade em uma sociedade capitalista, os primeiros aspectos que vêm à mente são as desigualdades econômicas, que evocam as noções de pobreza e riqueza. No entanto, há também oportunidades de trabalho desiguais, acesso desigual à educação e cultura, vários tipos de hierarquia, preconceito e, principalmente, o tratamento desigual para grupos diferenciados.

O aumento da desigualdade raramente é percebido como sinal de alguma coisa, além de problema financeiro. O sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o termo “dano colateral” para falar da forma como os governantes tentam se eximir da responsabilidade quando são acusados de promover das desigualdades. Geralmente asseguram que as açõesde governo contém riscos neutros e não intencionais.Em “Danos Colaterais”,Baumanteoriza sobre a afinidade seletiva entre o crescimento da desigualdade social e a expansão do volume de danos colaterais e considera a tendência de as autoridades lavarem as mãos diante da desigualdade, considerando-a um mal necessário.

A desigualdade social brasileira é sentida nos níveis estruturais e individuais, numa análise pormenorizada feita pelo IPEA, publicada no final do ano passado, ondeexpõe as cicatrizes de um país que se constituiu sob o signo da exploração por uma burguesia estrangeira e tempos depois, a dominação configurou-se na figura dos patrões, donos de engenhos e dos empregados da casa grande. A relação de exploração consentida, como na teoria de Rousseau, foi-se constituindo um meio para se sobreviver. As desigualdades foram sendo escancaradas e comparadas também pelo resultado da pesquisa Desigualdade no Brasil, da Oxfam Brasil e relatório Riqueza Global publicado peloCreditSuisse, mais recentemente. As diferenças sociais e econômicas foram reveladas:1% dos mais ricos no Brasil detém 49,6% da riqueza total do país. Isso significa que o Brasil tem a segunda maior taxa de concentração de riqueza entre 180 países pesquisados.

Esse é um dos sintomas da desigualdade: a fatia de rendaexageradamente generosa acumulada pela elite, com contribuição das “ações neutras ou não intencionais” do estado, como descreveu Bauman. Basta lembrar que o mercado, que favorece o enriquecimento ainda maior de1% que vivem na bolha dos mais ricos no Brasil, é regulado pelo estado.

Há uma grande camada da população que precisa ser assistida pelo estado e a construção de uma sociedade mais igualitária passa por uma rede de proteção estendida pelo estado para proteger os mais vulneráveis, mas a maioria não quer favor dosgovernos, mas ter sua própria capacidade de trabalho aproveitada e viver dela.

Em que pese a extensão do fosso que separa os brasileiros, a igualdade vive no imaginário humano no mundo político, social, econômico, religioso e literário. A natureza humana comum a todos, independentemente das desigualdades sociais que suportamos ou das diferenças pelas quais temos que lutar, faz com que o ser humano pense na igualdade social como um dos seus principais valores.

A teoria do princípio do dano

Sem dúvida alguma, você tem o direito de colocar sua própria vida em risco. As liberdades individuais devem ser respeitadas, mas elas não representam direitos irrevogáveis. Como argumentou na teoria do princípio do dano, o filósofo britânico John Stuart Mill em Sobre a liberdade, 1859: “sua liberdade é limitada pelo dano que pode causar a outras pessoas”. Em outras palavras, a liberdade individual, tal como John Mill a propõe não admite restrições outras que não sejam um eventual prejuízo a outras pessoas.

Quando a ação ou até mesmo a omissão de um indivíduo causar um dano irreparável à coletividade, ele pode ser interpelado, cobrado quanto a sua responsabilidade para com o coletivo. Temos que pensar o quanto é importante para o coletivo que sejamos individualmente responsáveis quanto a pandemia. A partir dessa compreensão cada indivíduo deve fazer a sua parte para reduzir as taxas de infecção e transmissão do vírus e isso implica não ser complacente com as pessoas que agendam e não comparecem para receber a vacina.

Para se ter uma ideia da absurda evasão, reproduzo aqui o que li no site da Prefeitura de Cuiabá: ”Quase 70% das pessoas agendadas para vacinar contra a Covid-19, na quarta-feira (16/06), em um dos seis polos de Cuiabá, não compareceram. Os dados são das equipes que coordenam a vacinação na capital de Mato Grosso. Do total de 4.934 pessoas dos grupos prioritários agendados, somente 1.492 estiveram nos locais, totalizando 3.442 faltosos”.

Segundo uma assistente social que trabalha em um polo de vacinação, as razões da evasão são várias, que vão desde a falta de colaboração de familiares para levar a pessoa para vacinar, esquecimento e também um método utilizado para não receber a dose de determinada vacina, porém, segunda ela, a razão principal é mesmo o descaso no trato da pandemia. A falta do senso de responsabilidade coletiva.

Uma amiga jornalista confidenciou que não compareceu no dia agendado porque viajou para uma visita de rotina à família numa cidade próxima a Cuiabá e quando retornou, reagendou; a professora que faltou ao agendamento, com quem falei também não teve nenhuma razão urgente para ter faltado. Alegou que, embora tenha se cadastrado, não há pressa porque as aulas não começaram e ela não pretende voltar à sala de aula, vai requerer o benefício da licença prêmio e continuar em casa. Sugiro que as pessoas pertencentes a grupo prioritários que não comparecem no dia agendado, deveriam gozar de uma tolerância mínima, sob pena de perderem o status de prioridade.

Num país que acaba de romper a inacreditável marca de 500 mil mortos e ainda registra a absurda marca de mais de duas mil mortes por dia, não há outra alternativa senão renovar nossa fé e a compreensão de que temos que ter responsabilidade com a vacinação, nos proteger, proteger nossa família e tantos quantos nosso gesto puder alcançar. Pequenas ações individuais podem realmente fazer uma diferença de grandes efeitos coletivos, mesmo que seja difícil de perceber.

A vacinação é considerada a intervenção médica mais eficaz e mais barata por meio da qual a imunização individual e coletiva é alcançada. Espera-se que as vacinas diminuam não apenas as taxas de infecção, mas também as taxas de transmissão do vírus. Isso significa que tomar a vacina pode proteger você e outras pessoas e contribuir para que a população alcance a imunidade coletiva o mais rápido possível.

Queres postar? Postas!

Sempre soube que podemos cancelar assinaturas da Netflix, Amazon Prime, TV por assinatura, linha telefônica e até mesmo um “date” (encontro amoroso) porém a moda é cancelar pessoas.

O debate em torno da cultura de cancelamento é, em parte, sobre a forma intolerante como tratamos uns aos outros e, em parte, sobre a frustração com a falta de consequências reais para pessoas que usam, sobretudo as mídias sociais para se expressar e atear fogo em assuntos polêmicos, muitas vezes com argumentos insuportavelmente rasos.

Toda essa retórica dramática de ambos os lados do debate mostra como a cultura de cancelamento incendiária se tornou “modinha”. À medida que as divisões ideológicas parecem cada vez mais intransponíveis, a linha entre o pessoal e o político está desaparecendo para muitas pessoas. Aí a cultura do cancelamento surge como uma marca perturbadora da nossa incapacidade de ouvir, concordar, discordar, argumentar e seguir em frente sem ódio.

Figuras públicas passaram pelo constrangimento do cancelamento e embora possam ter enfrentado longa exposição e críticas negativas consideráveis sendo chamados à responsabilidade por suas declarações e ações, muito poucas delas experimentaram prejuízos maiores.

Para as pessoas que estão cancelando, no curto prazo isso as faz se sentir bem. Isso lhes dá uma ilusão de poder, de controle mas depois percebem que na verdade não fizeram nada de excepcional além de impedir uma discussão que poderia avançar em polêmica, coisa absolutamente natural nos ambíguos espaços públicos.

Nenhuma abordagem sobre tema algum ocorre de forma uniformemente perfeita e antes de responsabilizarmos ou excluirmos o outro, devemos refletir sobre a coerência de nossas próprias ações e falas. Afinal, a cultura do cancelamento é uma ferramenta importante de intimidação implacável da maioria contra alguns? Ou a ideia de ser cancelado funciona para impedir um comportamento potencialmente ruim e desagregador? Creio que cancelamos alguém para nos afirmar diferentes.

Então, dentro destas perspectivas, cancelar uma figura pública pode servir como um corretivo, porém, aplicado diante de um julgamento, quase sempre feito às pressas, que não oferece um exame completo das evidências do “crime”.

Na maioria dos casos, creio que o elemento vital de reparação do mal feito ou mal falado é o debate, dentro de uma abordagem reconciliatória banhada pela crença de que as pessoas podem mudar. Precisamos preservar a possibilidade de desacordo com boa fé, enfrentar as enormes divisões que temos diante de nós, que exige o compartilhamento de ideias, a descoberta de um terreno comum e o uso do que é certo no mundo para remediar o que há de errado.

É melhor que conduzamos nosso trabalho e nossa vida social com um espírito de partilha, generosidade, exploração, curiosidade, experimentação e até mesmo disposição para falhar em nossos esforços sinceros para compreendermos uns aos outros.

Na página da atriz Ilana Kaplan no Instagram, ela representa uma especialista em etiqueta virtual. Responde as perguntas, quase sempre sobre postar falas e fotos inconvenientes nas mídias sociais, ela ouve as histórias e responde com muito sarcasmo:

-Tu queres postar? Postas.

– É de bom tom?

– Não, não é de bom tom!

É por aí que me posiciono. Posso achar algumas falas alheias inconvenientes, superficiais e de péssimo tom, mas a decisão e a responsabilidade de postar não são minhas.