A extensão da mentira na República

Cerca de 134 milhões de brasileiros tem acesso à internet, mais de 100 milhões são usuários frequentes das mídias sociais, o que significa quase metade da população do país, segundo matéria da Agência Brasil. Contudo, a maioria das informações compartilhadas não são verificadas, são incompletas e de qualidade questionável. São as chamadas “fake News”, que se sobrepõem a outros distúrbios da informação, como desinformação, informações equivocadas ou enganosas e informações falsas que são divulgadas propositadamente para enganar ou confundir as pessoas.

Frequentemente, a mentira tem sido utilizada, na sociedade, como um instrumento de manipulação do homem pelo homem e a doença aguda da nossa sociedade, a adoração de alguns líderes políticos, facilita a manipulação e propagação de notícias falsas. Existem simplesmente muitas “verdades” aceitas que não são verdadeiras. Falsas versões de eventos, fatos claramente deturpados assumiram um papel estranhamente dominante na vida nacional.

Platão, na obra “A República”, mostra-se complacente com a mentira e admite que determinada classe social, como médicos e governantes podem mentir se for para o bem de seus pacientes e para o bem comum dos cidadãos. Aristóteles, porém, em sua obra “Ética a Nicômaco”, considera que nunca é permitido dizer uma mentira.

Santo Agostinho rejeitou todo e qualquer tipo de mentira, não aceitando nenhuma justificativa para a sua prática. Foi um dos primeiros pensadores a esmiuçar e sistematizar o tema. Ele elaborou teses sobre a mentira em dois tratados, intitulados “Sobre a Mentira” e “Contra a Mentira”.  Santo Agostinho fala dos mentirosos e enganadores, que não apenas revelam, mas também ocultam o pensamento. “Ninguém poderá duvidar que mente aquele que com ânimo deliberado diz algo falso com intenção de enganar”. A mentira é explicada como uma significação falsa unida à vontade deliberada de enganar outros.

A doutrina do duplo coração de Santo Agostinho sobre a mentira, fala da divergência entre aquilo que se crê interiormente e aquilo que se fala. Por isso se diz que o mentiroso tem um duplo coração: aquele que sabe que é verdade e se cala, e outro, aquele que fala sabendo que é tudo falso.

Na filosofia moderna, Immanuel Kant, no livro “À paz perpétua” diz que a condição prática moral para a paz perpétua na república é a aceitação universal do princípio da verdade ou, a proibição total da mentira. “Tu não deves mentir nem mesmo na mais piedosa das intenções”.

Fiódor Dostoiévski, em “Os irmãos Karamázov, encerra as citações sobre a mentira: “O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém acaba na total bestialidade em seus vícios, e tudo isso movido pela contínua mentira para os outros e para si mesmo”.

Diante da vulnerabilidade de quem se informa por meio das mídias sociais, não causa surpresa que políticos de todos os lados possam ignorar os fatos narrados pela mídia de notícias e, em vez disso, usar a mídia social para fazer seus seguidores acreditarem e compartilharem suas afirmações, preferencialmente, as falsas. No mínimo, devemos ser mais rigorosos com as notícias que escolhemos ler e passamos adiante.

Como as democracias desvanecem

Tempos difíceis, é fato. Tivemos uma semana tensa, de críticas contundentes e muitas vezes desrespeitosas as instituições políticas, produção e reprodução de palavrões para designar ministro do Supremo Tribunal Federal, Live para apresentar provas de fraude nas eleições de 2018, que terminou com o anúncio de que não há provas. Bravatas, só bravatas? Ou bravatas aliadas ao frágil compromisso com as regras democráticas?

Li “Como as democracias morrem”, dos professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em 2019 e confesso que tive que reler trechos porque não poderia ser mais pertinente para o atual momento político que vivenciamos. Após uma longa jornada pela história de democracias falidas e diagnósticos de suas doenças fatais, como a corrupção, os autores não prescrevem exatamente um tratamento mas dão indícios do que deve e não ser feito.

A boa notícia do livro é que existem várias rampas de saída no caminho para o autoritarismo. A má notícia é que, nem sempre os eleitores percebem isso.

Os cientistas políticos passaram mais de vinte anos estudando o colapso das democracias na Europa e na América Latina e acreditam que o perigo é que a democracia não termina mais com um estrondo gigantesco, com uma revolução ou golpe militar, mas morre silenciosamente, com um gemido, ou seja; culmina com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas, como o judiciário e a imprensa, e a erosão gradual das normas políticas não escritas mas até então preservadas.

Com ampla gama de exemplos históricos e globais, da Europa dos anos 1930 à Hungria, Turquia e Venezuela contemporâneos, a eleição de Trump nos Estados Unidos. Os autores vão entrelaçando ciência política e análise histórica de crises democráticas internacionais e ao fazer isso, eles expandem a conversa para a necessidade de vigilância constante, visto que, quase todas as democracias do mundo já passaram por regimes autoritários.

Ensinam os professores que as democracias funcionam melhor e sobrevivem mais tempo onde os sistemas de freios e contrapesos funcionam e onde as constituições são reforçadas por condutas democráticas e que a polarização do cenário político prejudica a qualidade da democracia e o retorno às normas de indulgência e tolerância mútua.

Em artigo de 2019, citei o trecho do livro onde diz que as grades que protegem a democracia estão enfraquecendo e há regras que podem provar o esfacelamento do comportamento democrático. Vejamos:

Se os órgãos de controle, se tornam armas política, auditando severamente os oponentes do governo.

Se imputam à imprensa e à oposição a pecha de inimigos do governo. É notável nos autocratas, a intolerância à crítica e a disposição de usar o poder para punir aqueles que venham a criticá-los.

Se adversários políticos são descritos como comunistas ou ameaças à ordem constitucional. Se há um sistema contínuo de desqualificação dos oponentes partidários.

Se há encorajamento à violência.

Se há elogios a atos significativos de violência política e medidas repressivas tomadas no passado.

Aviso: Os cinco itens citados acima podem acionar o botão de pânico.

É preciso coragem para admitir fraqueza

Não precisamos de permissão para sermos humanos. Ignoremos as críticas. Muitas pessoas vivem tentando obedecer a padrões que são difíceis de alcançar, sem causar transtornos emocionais.

Necessidade não temos de nos encaixar em um molde perfeito, porque a perfeição vai estar sempre além do que fazemos. A tempestade perfeita dá-se quando nos esforçamos o tempo todo para agradar outros, para corresponder às expectativas alheias, enquanto o que torna a vida mais feliz é nos aceitarmos como somos, transparentes e imperfeitos, sem tantas justificativas.

A vida é dura. Vivemos todos sob pressão. Nem sempre, nem todos os dias, corpo e mente estão em sintonia para realizar tarefas treinadas e repetidas à exaustão por anos. Entre críticas, comentários de apoio e compreensão, a ginasta norte-americana Simone Biles, 24, causou perplexidade no Japão, ao desistir das finais olímpicas, para as quais estava classificada, alegando necessidade de preservar a saúde mental.

Biles explicou que não se reconheceu numa apresentação. Corpo e mente se desconectaram, ela ficou desorientada enquanto seu corpo subia e girava no espaço, experimentou uma sensação terrível de bloqueio mental repentino, perda total da orientação espacial e exatamente esse sentido de orientação precisa sempre foi característica admirada na atleta. A pressão de ser o rosto dos Jogos de Tóquio foi algo acima do que suportaria a mente de Simone, que há anos já dava sinais de que algo não ia bem.

Virou rainha da ginástica aos 19 anos, nas Olímpiadas do Rio de Janeiro em 2016. Chegou simpática, brilhou no solo, conquistou 4 medalhas de ouro e 1 de bronze e disse que quando terminasse a competição, só queria ser normal e sair para comer uma pizza de pipperone. O que esperavam dela em Tóquio? A mesma coisa; simpatia, apresentações impecáveis e muitas medalhas.

Pesquisei o hiato entre as Olimpíadas do Rio e de Tóquio, ou seja, de 2017 a 2021. É possível encontrar inúmeras entrevistas de Simone Biles falando sobre o quadro depressivo que enfrentava, sobre o desconforto e a vergonha de ter sido abusada sexualmente, sobre as terapias, as possibilidades de cura, mas a ginasta Simone continuou treinando, para confirmar seu nome como a maior ginasta de todos os tempos em Tóquio, sem contar que, em desalinho com o corpo, a mente ordenou um passo para trás para curar-se do abandono da mãe, do escandaloso caso do assédio sexual envolvendo omédico da Confederação Americana de Ginástica Olímpica, da cobrança pelo ativismoracial, para declarar-se engajada no movimento “Black LivesMatter”.

A confirmação de que fora abusada veio a público por uma mensagem dela mesma no ano de 2018 e num jornal de grande audiência na TV Americana, Simone confirmou o quadro de depressão, disse estar fazendo terapia e fazendo uso de medicação para controlar a ansiedade. “Eu estava muito deprimida. Eu dormia o tempo todo e disse para meu advogado que eu dormia porque dormir era a coisa que mais parecia com a morte”.

Assumida a depressão, assunto sendo tratado de forma transparente, em 06 de julho passado, antes de embarcar para Tóquio, Simone Biles postou: “Acho normal eu dizer que preciso de ajuda. Não há nada errado nisso. Os atletas estão falando mais sobre isso. No final do dia, somos iguais a vocês”.

Na última entrevista da semana, Simone concluiu: “Não confio mais em mim mesma, tenho que me concentrar na minha saúde mental” e assim termina sua participação nesta que deve ser sua última Olimpíada.

Parar, interromper não é uma construção premeditada, não é uma degeneração de habilidade, às vezes é necessário para encontrar a lucidez. Falhar, retroceder é normal, como nos recuperamos é o que importa.

O que revelou a fila dos ossos

A fila dos ossos, que falsamente escandalizou a sociedade e a mídia de Cuiabá e de todas as partes do Brasil, tem causa social, e não é natural, mas não evidenciou nenhuma situação nova, apenas escancarou uma realidade sabida e tratada com indiferença por quase todos. (Para os amigos que me leem e não moram em Cuiabá: semana passada vazou um vídeo, que viralizou, onde havia muitas pessoas numa fila, nos fundos de um açougue, esperando para ganhar ossos, para colocar na sopa).

Confirmou que o Brasil, o gigante Latino-Americano, é o 9º país mais desigual do planeta. O Ministério da Cidadania admite que 39,9 milhões de pessoas vivem na extrema pobreza no Brasil, dos quais mais de 14 milhões de família cadastradas, com renda de até R$ 89. 140 mil famílias em estado de extrema pobreza em Mato Grosso, 18 mil famílias na mesma situação em Cuiabá.

Um em cada quatro brasileiros é pobre, de acordo com a pesquisa Sínteses dos Indicadores Sociais, do IBGE e entram na conta somente os moradores de residências permanentes, ou seja, estão excluídas da pesquisa as pessoas em situação de rua, o que aumenta ainda mais o rastro da fome espalhado pelo país.

No mundo, ano de 2020, mais de 588 milhões de pessoas viviam em pobreza extrema, o que significa que aproximadamente 7,7% da população global vive nessa situação inadmissível. A maioria dessas pessoas estão envoltas numa forma de ciclo de pobreza que, sem severa intervenção externa, sobretudo dos governos, é improvável que seja quebrado.

E o Brasil está a décadas de distância de atingir um nível razoável de igualdade social. Veja você, que um trabalhador que ganha salário-mínimo levaria 19 anos para acumular a mesma quantia que um dos brasileiros mais ricos ganharia em apenas um mês. É disso que estamos falando, da disparidade cruel e secular entre as classes sociais.

E sobre classes sociais existentes, o cientista, advogado e geógrafo Milton Santos tem uma frase profunda para identificá-las. “Existem apenas duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.

A pobreza é mais do que falta de recursos. Ela se caracteriza pelo descaso dos governantes, pela corrupção que embolsa recursos que poderiam ser aplicados em políticas públicas, em ampliação dos valores pagos pelos programas de transferências de renda. Tem sido, mas não precisa ser sempre assim: desemprego, pobreza extrema e desigualdade crescente são males estruturais que assolam a complexa sociedade brasileira. São famílias vivendo à margem da sociedade, vendo o crescimento e a prosperidade passarem por eles, mas em suas vidas há apenas escassez. Não tem comida suficiente, não tem água limpa ou saneamento, não tem acesso à educação e saúde.

Entretanto, o fardo que a pobreza representa para a sociedade e os indivíduos não é apenas econômico ou físico. Medir a pobreza desta forma ignora os outros tipos de pobreza que oprimem os marginalizados. As pessoas pobres sentem agudamente sua impotência e insegurança, a vulnerabilidade e falta de dignidade. A pobreza extrema faz com que os pobres sofram emocional e espiritualmente também.

Os pobres, mais do que qualquer outro grupo, dependem de serviços públicos básicos. Melhorar o acesso à educação de qualidade e a saúde são vias imprescindíveis para se sair da pobreza, cuja extensão, pode ser percebida de outras formas além da fila dos ossos.

A florada dos Ipês

Os ipês são o testemunho de um fenômeno botânico. Para que suas flores desabrochem abundantemente, essas árvores flertam com a morte. É o açoite causado pelo frio e pela seca que envelhece e arranca todas as folhas e dispara o relógio biológico dos ipês indicando que é tempo de florescer.

Ou seja, é da experiência de quase morte devido às severidades do clima que vem a beleza dos ipês. A planta entende o estresse como sinal de que seu fim pode estar se aproximando e, como resposta, produz o máximo de sementes para deixar descendentes. Essa explicação dada por um biólogo encontrei numa coluna chamada O Jardineiro Casual.

Somos todos nós contemporâneos desse tempo tão difícil de Imposições de restrições e isolamento, de lidar com os diversos sofrimentos, lidar com as perdas, com o luto, com a depressão, com as ameaças do vírus devastador. Somos todos nós contemporâneos dessas dores.

A morte é difícil de lidar, especialmente quando é inesperada. No Livro Tibetano do Viver e do Morrer encontro a explicação de que todas as coisas que tomam forma, se dissolvem novamente e que a vida é um processo onde todas as coisas são impermanente e imutáveis e, que o ciclo da existência cessa a qualquer momento. Assim como é natural que pessoas que amamos morram, é natural que o sentimento de dor também passe. Seja qual for o sentimento que estamos experienciando, vai passar.

No meio da pandemia a vida continua. As pessoas se apaixonam, se casam, têm filhos e morrem, de causas naturais, eventos trágicos e contaminados pelo vírus. São fatos da vida. Apesar do isolamento e distanciamento social, o ciclo da vida continua e aos poucos temos que sair do bunker que transformamos nossos lares, equipados com todos os recursos necessários para a sobrevivência para retomar o equilíbrio que perdemos para seguir com a missão de conciliar a realização dos sonhos, equilibrar-se em relacionamentos, encontrar paz de espírito, saúde e segurança financeira.

Portanto, sempre que encontro em uma situação difícil, respiro fundo e penso: a vida é toda interconectada. Se o problema surgiu, um caminho deve haver que leve a solução. Surgiu a doença, no tempo que foi possível, descobriram a vacina. Nossos corpos estão se curando. A vida segue o curso. Inexorável!
As vacinas, ainda que lentamente, estão sendo aplicadas, as pessoas estão imprimindo certa normalidade aos dias. Muitos, provavelmente começaram a se sentir melhor, livres dos medos obscuros, da incerteza e das premonições em relação ao futuro. Entretanto, concordamos que o fim da pandemia não significa uma mudança mágica e perfeita de volta à vida Pré-Pandêmica. A transição para a era Pós-Pandemia pode ser lenta e incerta quanto ao comportamento do vírus ao longo de um tempo vindouro.

Mesmo assim, a vida não precisa ser essa série de crises inquietantes e custosas, que ao fim, quase conseguiram desmontar a vida humana, não enquanto houver a exuberância dos sofridos ipês colorindo as avenidas, nos ensinando que devemos nos fortalecer para atravessarmos as rigorosas secas e os bravios invernos da vida.