Que fique claro que interpretar uma cultura é algo extremamente delicado. No livro “A interpretação das culturas”, o antropólogo Clifford Geertz, aproxima a definição de cultura como o modo de vida global de um povo; o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo; uma forma de pensar, sentir e acreditar; a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente; um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes; um comportamento aprendido, entre outras citações conceituais.
Porém, a jornalista norueguesa Asne Seierstad possui uma formação que lhe concede credibilidade para que eu sugira a leitura desse livro, no momento em que é muito importante acompanhar a retomada do poder do Afeganistão pelos Talibãs. Licenciada em jornalismo, russo e história da filosofia na Universidade de Oslo, Asne foi correspondente para jornais noruegueses na Rússia e na China, cobriu a guerra do Kosovo, Chechênia, Afeganistão e Iraque.
A jovem jornalista foi para o Afeganistão no final de 2001 para cobrir a queda do governo do Talibã. Ao chegar em Cabul, encontrou o dono de uma rede de livrarias, o afegão Shah Mohammed Rais, 53 anos, formado em engenharia civil, um homem erudito, que tinha uma filial das livrarias em um hotel parcialmente destruído pelos frequentes ataques dos Talibãs.
Por quase três décadas, Shah Mohammed Rais, no livro de Asne, retratado como Sultão Khan, desafiou as autoridades, enfrentou a perseguição de sucessivos regimes repressivos, tanto comunistas quanto talibãs para levar livros aos cidadãos de Cabul. Ele foi detido, interrogado e preso pelos comunistas e também viu soldados analfabetos do Talibã queimarem pilhas de seus livros nas ruas. Muçulmano comprometido Khan é apaixonado por livros.
Estabelecida a confiança entre ambos, a jornalista foi morar na casa de Shah Mohammed Rais e sua família para documentar a rotina da vida doméstica da família (no livro citada como Família Khan). A jornalista viveu quatro meses com a família afegã e depois escreveu um relato detalhado da experiência, no qual ela retratou o livreiro como um intelectual liberal em público, um homem que lutou pela liberdade de expressão no Afeganistão, mas oprimiu e reprimiu as mulheres de sua própria família. Dessa narrativa nasceu o livro “ O livreiro de Cabul”, que se tornou um best-seller, traduzido para mais de 30 idiomas.
No livro não há muitas citações de fatos históricos, tampouco foca na instabilidade nas zonas tribais entre Afeganistão e Paquistão. A autora concentra maior atenção na denúncia da sociedade afegã, que sistematicamente nega às mulheres dignidade e autonomia. As mulheres afegãs, mesmo após a queda do Talibã permaneceram estruturalmente subordinadas aos homens afegãos.
Em outra parte do livro, a autora reforça traços de conflito cultural nas práticas diárias do “livreiro”, como o abuso e descaso dele contra as pessoas com as quais convive. Ele manda para o Paquistão sua fiel há 16 anos para abrir espaço na casa para uma segunda esposa que havia comprado, uma jovem de 16 anos. Força o filho de 12 anos a trabalhar o dia todo no saguão de um hotel, vendendo doces em uma barraca úmida que a criança chamava de “o quarto sombrio”. O mais surpreendente é que “o livreiro” nega ao menino acesso à educação. A irmã do Sultão Khan, Leila é praticamente uma escrava doméstica, faz todos os trabalhos da casa e é proibida de sair as ruas. Leila aprendeu inglês e sonha trabalhar como professora, mas precisa que um de seus parentes se dê ao trabalho de acompanhá-la a sede da Secretaria de Educação para preencher os documentos necessários,mas eles não lhe dão atenção.
Ao receber um exemplar do livro em inglês, o “livreiro de Cabul” sentiu-se traído pela jornalista norueguesa e uma batalha judicial foi travada contra a autora do livro, que se recusou a pedir desculpas à família. O “livreiro” e sua jovem esposa alegaram que suas rotinas foram deturpadas, que a família fora difamada. Não temos como saber se houve exagero ou deturpação em algumas passagens, resta que são surpreendentes as intimidades reveladas, as realidades da vida diária no Afeganistão, esse pedaço de universo tão fechado para nós ocidentais.
Outras duas sugestões interessantes que adentram o universo da cultura afegã são: O Caçador de Pipas e a Cidade do Sol.
*Título do livro de Asne Seierstad