A casa dividida

Na convenção Republicana de junho de 1858, Abraham Lincoln foi indicado a concorrer ao Senado pelo estado americano de Illinois. Na oportunidade, fez um de seus mais famosos discursos conhecido como a “Casa Dividida”, que diz: “Uma casa dividida contra si não subsistirá. Acredito que esse governo, meio escravocrata e meio livre, não poderá durar para sempre. Não espero que a União se dissolva; não espero que a casa caia; mas espero que deixe de ser dividida”. Foi derrotado na disputa ao Senado. Mesmo derrotado, conquistou a confiança do partido pela moderação, dois anos mais tarde, foi eleito o 16º presidente dos Estados Unidos.

No livro “Mutual Radicalization”, Fathali Moghaddam, psicólogo e professor da Universidade de Georgetown, diz que os líderes podem ser muito eficazes em apaziguar ou criar, fortalecer e fomentar a radicalização mútua, usando um termo que ele criou para descrever o crescimento de dois lados opostos em direção a posturas cada vez mais divergentes. Já os esforços de reconciliação são processos lentos, “porque é difícil fazer com que antigos inimigos repensem uns aos outros como concidadãos e passem a uma condição de coexistência não-violenta e mutuamente aceitável”.

O processo de reconciliação nacional proposto pelo presidente Lula na sua posse foi pelos ares com a violência de 08 de janeiro. A ruptura alargou-se, a desconfiança reacendeu. Maus cidadãos e cidadãs quebraram e saquearam as maiores instituições do país, exibiram cenas de vandalismo impressionante. Muitos foram presos. Após a fracassada insurreição apareceram as digitais das forças armadas e da polícia no ato. Reconciliar, como?

A Casa quase caiu, mas o presidente Lula e as autoridades mostraram que estão no comando do país. Prenderam um ex-ministro da justiça, afastaram o governador do Distrito Federal e prenderam o comandante da polícia militar. A política de reconciliação cedeu lugar a prisões e quebra de confiança. Histórias assombrosas vieram à tona, como a do cidadão que havia espalhado bombas ao redor do aeroporto de Brasília, para matar inocentes. Segue a caça aos graúdos financiadores do golpe ‘tabajara’. Foi um janeiro tenebroso e longo!

Enfim, o que parecia ser uma insurreição, uma tentativa malfadada de golpe, tem revelado ser uma trapalhada sem limites. Mal desponta fevereiro, trazendo nova esperança de reconciliação nacional mas surge do Senado Federal, Marcos do Val, militar do Exército Brasileiro, senador capixaba, que elegeu-se exibindo-se com armas, vangloriando-se de haver participado do grupo de elite da Swat americana.

O senador acorda de madrugada, ou no meio de numa noite de insônia e faz uma Live, acusando o ex-presidente Bolsonaro de tê-lo coagido a colaborar com a elaboração de uma insurreição, concebida pelo bolsonarista Daniel Silveira, cujo alcance seria afastar o Ministro Alexandre de Moraes do julgamento das heresias cometidas após a eleição de outubro passado. Daniel Silveira foi preso.

Live gravada por milhares, imagens do valente senador exibindo print de conversas sobre a missão em destaque na mídia nacional, tensão. Eis que o senador volta atrás após receber telefonema dos filhos de Bolsonaro alertando que ele, o senador deveria ‘frear’ as acusações que estava fazendo. O senador repentinamente, convoca a imprensa, fala do amor pela filha única e puxa o freio. Anunciou que renunciaria ao mandato, recuou.

A Casa segue dividida!

Escolas cívico-militares, contrárias à ideia de uma escola democrática

Uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro na educação foi o emblemático programa de escolas cívico-militares. No decreto justifica-se que a gestão de escolas públicas convencionais seria compartilhada com os militares das Forças Armadas, Policiais e Bombeiros militares, os quais não atuariam em sala de aula, dariam apoio no acolhimento e preparo dos alunos na entrada dos turnos, no intervalo de aulas e nos períodos de encerramento dos turnos, colaborariam nos projetos educativos extraclasses baseados em princípios militares. Então, onde justifica que militares abandonem seus postos para ficar à disposição das escolas para exercerem funções desqualificadas no contexto do próprio texto do decreto?

Criado em setembro de 2019 por meio de um decreto, o programa apresentou-se com o objetivo de diminuir a evasão escolar e inibir casos de violência na escola e na comunidade a partir da disciplina militar. É possível regatar o discurso de lançamento do programa, onde, tanto o ex-presidente quanto o ex-ministro da educação à época, se exultavam da possibilidade de que a presença dos militares nas escolas públicas pudesse resgatar os valores da ‘sagrada’ família brasileira e instaurar a ordem, a moral e o patriotismo.

O educador Anísio Teixeira, no livro A autonomia para a Educação ensina que “embora todos os regimes dependam da educação, a democracia depende da mais difícil das educações e da maior quantidade de educação e há educação e educação. Há educação que é treino, que é domesticação. E há educação que é formação do homem livre e sadio”.

Considerando a sociedade diversa que vivemos, há artigos e estudos consensuais de que as escolas cívico-militares sugiram na contramão da democracia. E a pluralidade, as políticas de inclusão são, quase sempre, recebidas com desconfiança pela população mais conservadora, que segue martelando o discurso de que os princípios democráticos da liberdade desmantelaram os valores da família e corromperam a ordem moral que havia no passado.

Ademais, os bons índices alcançados por muitas dessas escolas deve-se ao fato que as matrículas são triadas, portanto são escolas que abrigam alunos que apresentariam desempenho destacado em qualquer escola. O outro ponto que usam para justificar a presença de militares nas escolas é que melhora a segurança na escola e na comunidade, ninguém duvida disso, mas esse objetivo pode ser alcançado por meio de parceria, sem a militarização do ensino e os jovens que queiram este tipo de formação e carreira têm a opção de procurar escolas militares bem-conceituadas existentes.

O fato é que os colégios militares não atendem à pluralidade que está presente na sociedade brasileira. É um projeto que foi concebido valendo-se de um equivocado plano de impor disciplina aos jovens, subtrair a autonomia de profissionais com formação continuada na área educacional, que estão na condução da gestão escolar. O professor de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão disse que o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares foi uma infeliz ideia, iniciada num contexto permeado de programas de caráter autoritário e de retrocesso e não vê nenhuma fundamentação que sustente a militarização dentro das escolas públicas, o que afronta, inclusive a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Mais de 350 municípios declararam que pretendem insistir na implantação do modelo, entretanto, em ato comemorado por educadores, de fato, o presidente Lula extinguiu o programa.

Nós somos a terra do golpe

Começo esse artigo apropriando-me de uma aula do historiador Leandro Karnal, numa entrevista, onde ele faz uma retrospectiva sobre os golpes de estado a que a população brasileira já foi submetida: “Nós nunca tivemos uma guerra civil. Tivemos revolução Farroupilhas, Balaiada, Sabinada, Cabanagem, separação de São Paulo, nada disso foi guerra civil, foram revoltas, regenciais e com bons motivos. Guerra civil é coisa de argentino e colombiano. Nós nunca vivemos uma guerra civil”. 

Continua Karnal: “O estado brasileiro é uma sucessão de golpes desde a Proclamação da República em 1889, pelo menos, para lembrar que a independência em 1822 foi um golpe, a maioridade em 1840 foi golpe, 1891 foi outro golpe, nesse caso, Floriano Peixoto, a revolução de 1930 foi um golpe, 1937 houve golpe, em 1945 Getúlio é derrubado por um golpe, tentam derrubá-lo em 1954 com um golpe, há um contragolpe em novembro de 1955. Ou seja, nós somos a terra do golpe. Ou seja, isso é uma tradição e uma tradição de violência”. Houve a tentativa de golpe para barrar a posse de João Goulart em 1961, o sangrento golpe militar de 31 de março de 1964, o golpe de 2016, presumido por muitos historiadores, para derrubar Dilma Rousseff do poder.

Em outra entrevista Karnal é enfático e irônico: “Quando eu vejo alguém defendendo a volta dos militares eu olho para a idade. Se for um jovem eu me sinto no dever de explicar o que é o arbítrio, o que é a cassação de direitos como o habeas-corpus, o que foi o AI-5, o que é tortura de mulheres grávidas, o que é o fim da liberdade da imprensa, o que foi a barbárie da concentração de renda durante a ditadura militar e se for uma pessoa de idade, eu atribuo à falta de memória que a idade pode estar provocando na pessoa”. Ambas entrevistas, embora atualíssimas ocorreram no ano de 2016. 

Tem havido golpes e fumaças de golpes ao longo da nossa história, mas a tradição da violência não é algo fácil de aceitar. Ver a capital do país depredada por seus próprios filhos, ver a violência explodir das incubadoras montadas nas portas dos quartéis foi um momento de apavorante desolação e perda de fé nessa parcela significativa da população envolvida em um mundo sombrio de negacionismo, fake news e discurso de ódio, que guardou todos os detalhes sórdidos do episódio no Capitólio, nos Estados Unidos para repeti-los aqui. Em ambos os casos, o levante do mar de pessoas raivosas e mal-intencionadas foi estimulado pelos presidentes que, derrotados não aceitam o resultado das eleições.   

Não punir severamente as pessoas envolvidas no ato de selvageria ocorrido em Brasília pode perpetuar a instabilidade política, fragilizar a democracia. É necessário que sejam responsabilizados criminalmente, por isso, alegra-me que estas pessoas e quem as financiou estejam sendo identificadas, processadas e presas, sejam jovens ou idosos, estejam elas nas forças armadas, no congresso, no agro ou qualquer outro setor econômico.

Não baixemos à guarda, eles não merecem confiança! Chega de dar voz a lunáticos e malfeitores, que tentam justificar suas bandalheiras alegando estar defendendo o Brasil e a população brasileira das garras do comunismo. Narrativa, no mínimo digna de deboche!