Jesus levou 39 chibatadas pouco antes da sua crucificação. Essa é a primeira imagem que nos vem a mente quando se fala em açoite, depois vem a imagem dos escravos. Por mais de 300 anos os escravos trazidos para o Brasil foram açoitados e humilhados publicamente pelos seus senhores, mas desde 1886, dois anos antes da Abolição da escravidão, o parlamento brasileiro aprovou uma lei que aboliu a aplicação da pena de açoites em pessoas escravizadas.
Nos dias atuais, 137 anos após a aprovação da lei, no Rio de Janeiro, uma senhora com comportamento desprovido de lastro na humanidade se exibe empunhando a guia e coleira de um cachorro e desfere açoites num homem negro, entregador de comida.
A chibatada doeu na alma e remete-me a tantas outras situações em que somos açoitados na nossa civilidade e educação por pessoas carregadas de ódio, racismo e outros preconceitos, pessoas que se armam com argumentação conspiratória para justificar as atitudes desprezíveis, quando flagrados pela mídia ou confrontados pela Justiça, como ocorreu no caso do jovem açoitado. As milhares de reações de repúdio à agressão demonstram que estamos lentamente entendendo que a cor da pele, tampouco a condição social deveriam determinar como uma pessoa deve ser tratada.
A desconcertante cena do açoite, que faz lembrar a aquarela ‘Açoite em praça pública’, de Jean-Baptiste Debret, não demora será justificada como um surto psicótico seletivo da agressora, que em outras ocasiões já havia chamado o entregador de negro, macaco e favelado. Não é tão incomum o fato de pessoas se colocar acima dos outros, demarcar seus territórios e dele excluir quem não tem a mesma condição de raça, sobretudo. Esses rompantes de violência física e verbal são típicos de pessoas que vivem com a
crença de que suas necessidades, desejos e expectativas são de extrema importância, e dos outros, são irrelevantes. A empatia, um comportamento social que pode ser aprendido, é uma parte fundamental da construção de conexões sociais significativas.
São chibatadas que transversalmente abrem feridas em nossos lombos, sobrecarregados pela responsabilidade de educar, de dar ao mundo cidadãos melhores, mais humanos, empáticos ou pelo menos, mais tolerantes.
O preconceito tem duas fontes, diz o filósofo Mário Sérgio Cortella: a covardia e a tolice. O intolerante em relação a etnia, cor da pele, orientação sexual, religião e extrato econômico tem medo de ser o que é. Ele só se eleva quando rebaixa o outro. Necessita ver que o outro não serve e não presta para ele poder valer alguma coisa.
Melhor que o caso foi parar na polícia, a agressora teve que prestar depoimento, será processada por injuria racial, porque além da violência física, os xingamentos eram específicos sobre a cor da pele do entregador. Situações gritantes de desrespeito contra os trabalhadores informais de delivery, em geral, homens, jovens, pretos e pardos, de classe C e D, não podem ser minimizadas e devem ser denunciadas.
Ainda que a punição não seja exemplar, a exposição do caso, induz à reflexão e aflora sentimento de repúdio. A agressora foi banida da plataforma de delivery e o entregador, que fazia seu trabalho em uma bicicleta, ganhou uma moto da empresa para a qual presta serviço.