A casa dividida

Na convenção Republicana de junho de 1858, Abraham Lincoln foi indicado a concorrer ao Senado pelo estado americano de Illinois. Na oportunidade, fez um de seus mais famosos discursos conhecido como a “Casa Dividida”, que diz: “Uma casa dividida contra si não subsistirá. Acredito que esse governo, meio escravocrata e meio livre, não poderá durar para sempre. Não espero que a União se dissolva; não espero que a casa caia; mas espero que deixe de ser dividida”. Foi derrotado na disputa ao Senado. Mesmo derrotado, conquistou a confiança do partido pela moderação, dois anos mais tarde, foi eleito o 16º presidente dos Estados Unidos.

No livro “Mutual Radicalization”, Fathali Moghaddam, psicólogo e professor da Universidade de Georgetown, diz que os líderes podem ser muito eficazes em apaziguar ou criar, fortalecer e fomentar a radicalização mútua, usando um termo que ele criou para descrever o crescimento de dois lados opostos em direção a posturas cada vez mais divergentes. Já os esforços de reconciliação são processos lentos, “porque é difícil fazer com que antigos inimigos repensem uns aos outros como concidadãos e passem a uma condição de coexistência não-violenta e mutuamente aceitável”.

O processo de reconciliação nacional proposto pelo presidente Lula na sua posse foi pelos ares com a violência de 08 de janeiro. A ruptura alargou-se, a desconfiança reacendeu. Maus cidadãos e cidadãs quebraram e saquearam as maiores instituições do país, exibiram cenas de vandalismo impressionante. Muitos foram presos. Após a fracassada insurreição apareceram as digitais das forças armadas e da polícia no ato. Reconciliar, como?

A Casa quase caiu, mas o presidente Lula e as autoridades mostraram que estão no comando do país. Prenderam um ex-ministro da justiça, afastaram o governador do Distrito Federal e prenderam o comandante da polícia militar. A política de reconciliação cedeu lugar a prisões e quebra de confiança. Histórias assombrosas vieram à tona, como a do cidadão que havia espalhado bombas ao redor do aeroporto de Brasília, para matar inocentes. Segue a caça aos graúdos financiadores do golpe ‘tabajara’. Foi um janeiro tenebroso e longo!

Enfim, o que parecia ser uma insurreição, uma tentativa malfadada de golpe, tem revelado ser uma trapalhada sem limites. Mal desponta fevereiro, trazendo nova esperança de reconciliação nacional mas surge do Senado Federal, Marcos do Val, militar do Exército Brasileiro, senador capixaba, que elegeu-se exibindo-se com armas, vangloriando-se de haver participado do grupo de elite da Swat americana.

O senador acorda de madrugada, ou no meio de numa noite de insônia e faz uma Live, acusando o ex-presidente Bolsonaro de tê-lo coagido a colaborar com a elaboração de uma insurreição, concebida pelo bolsonarista Daniel Silveira, cujo alcance seria afastar o Ministro Alexandre de Moraes do julgamento das heresias cometidas após a eleição de outubro passado. Daniel Silveira foi preso.

Live gravada por milhares, imagens do valente senador exibindo print de conversas sobre a missão em destaque na mídia nacional, tensão. Eis que o senador volta atrás após receber telefonema dos filhos de Bolsonaro alertando que ele, o senador deveria ‘frear’ as acusações que estava fazendo. O senador repentinamente, convoca a imprensa, fala do amor pela filha única e puxa o freio. Anunciou que renunciaria ao mandato, recuou.

A Casa segue dividida!

Escolas cívico-militares, contrárias à ideia de uma escola democrática

Uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro na educação foi o emblemático programa de escolas cívico-militares. No decreto justifica-se que a gestão de escolas públicas convencionais seria compartilhada com os militares das Forças Armadas, Policiais e Bombeiros militares, os quais não atuariam em sala de aula, dariam apoio no acolhimento e preparo dos alunos na entrada dos turnos, no intervalo de aulas e nos períodos de encerramento dos turnos, colaborariam nos projetos educativos extraclasses baseados em princípios militares. Então, onde justifica que militares abandonem seus postos para ficar à disposição das escolas para exercerem funções desqualificadas no contexto do próprio texto do decreto?

Criado em setembro de 2019 por meio de um decreto, o programa apresentou-se com o objetivo de diminuir a evasão escolar e inibir casos de violência na escola e na comunidade a partir da disciplina militar. É possível regatar o discurso de lançamento do programa, onde, tanto o ex-presidente quanto o ex-ministro da educação à época, se exultavam da possibilidade de que a presença dos militares nas escolas públicas pudesse resgatar os valores da ‘sagrada’ família brasileira e instaurar a ordem, a moral e o patriotismo.

O educador Anísio Teixeira, no livro A autonomia para a Educação ensina que “embora todos os regimes dependam da educação, a democracia depende da mais difícil das educações e da maior quantidade de educação e há educação e educação. Há educação que é treino, que é domesticação. E há educação que é formação do homem livre e sadio”.

Considerando a sociedade diversa que vivemos, há artigos e estudos consensuais de que as escolas cívico-militares sugiram na contramão da democracia. E a pluralidade, as políticas de inclusão são, quase sempre, recebidas com desconfiança pela população mais conservadora, que segue martelando o discurso de que os princípios democráticos da liberdade desmantelaram os valores da família e corromperam a ordem moral que havia no passado.

Ademais, os bons índices alcançados por muitas dessas escolas deve-se ao fato que as matrículas são triadas, portanto são escolas que abrigam alunos que apresentariam desempenho destacado em qualquer escola. O outro ponto que usam para justificar a presença de militares nas escolas é que melhora a segurança na escola e na comunidade, ninguém duvida disso, mas esse objetivo pode ser alcançado por meio de parceria, sem a militarização do ensino e os jovens que queiram este tipo de formação e carreira têm a opção de procurar escolas militares bem-conceituadas existentes.

O fato é que os colégios militares não atendem à pluralidade que está presente na sociedade brasileira. É um projeto que foi concebido valendo-se de um equivocado plano de impor disciplina aos jovens, subtrair a autonomia de profissionais com formação continuada na área educacional, que estão na condução da gestão escolar. O professor de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão disse que o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares foi uma infeliz ideia, iniciada num contexto permeado de programas de caráter autoritário e de retrocesso e não vê nenhuma fundamentação que sustente a militarização dentro das escolas públicas, o que afronta, inclusive a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Mais de 350 municípios declararam que pretendem insistir na implantação do modelo, entretanto, em ato comemorado por educadores, de fato, o presidente Lula extinguiu o programa.

Nós somos a terra do golpe

Começo esse artigo apropriando-me de uma aula do historiador Leandro Karnal, numa entrevista, onde ele faz uma retrospectiva sobre os golpes de estado a que a população brasileira já foi submetida: “Nós nunca tivemos uma guerra civil. Tivemos revolução Farroupilhas, Balaiada, Sabinada, Cabanagem, separação de São Paulo, nada disso foi guerra civil, foram revoltas, regenciais e com bons motivos. Guerra civil é coisa de argentino e colombiano. Nós nunca vivemos uma guerra civil”. 

Continua Karnal: “O estado brasileiro é uma sucessão de golpes desde a Proclamação da República em 1889, pelo menos, para lembrar que a independência em 1822 foi um golpe, a maioridade em 1840 foi golpe, 1891 foi outro golpe, nesse caso, Floriano Peixoto, a revolução de 1930 foi um golpe, 1937 houve golpe, em 1945 Getúlio é derrubado por um golpe, tentam derrubá-lo em 1954 com um golpe, há um contragolpe em novembro de 1955. Ou seja, nós somos a terra do golpe. Ou seja, isso é uma tradição e uma tradição de violência”. Houve a tentativa de golpe para barrar a posse de João Goulart em 1961, o sangrento golpe militar de 31 de março de 1964, o golpe de 2016, presumido por muitos historiadores, para derrubar Dilma Rousseff do poder.

Em outra entrevista Karnal é enfático e irônico: “Quando eu vejo alguém defendendo a volta dos militares eu olho para a idade. Se for um jovem eu me sinto no dever de explicar o que é o arbítrio, o que é a cassação de direitos como o habeas-corpus, o que foi o AI-5, o que é tortura de mulheres grávidas, o que é o fim da liberdade da imprensa, o que foi a barbárie da concentração de renda durante a ditadura militar e se for uma pessoa de idade, eu atribuo à falta de memória que a idade pode estar provocando na pessoa”. Ambas entrevistas, embora atualíssimas ocorreram no ano de 2016. 

Tem havido golpes e fumaças de golpes ao longo da nossa história, mas a tradição da violência não é algo fácil de aceitar. Ver a capital do país depredada por seus próprios filhos, ver a violência explodir das incubadoras montadas nas portas dos quartéis foi um momento de apavorante desolação e perda de fé nessa parcela significativa da população envolvida em um mundo sombrio de negacionismo, fake news e discurso de ódio, que guardou todos os detalhes sórdidos do episódio no Capitólio, nos Estados Unidos para repeti-los aqui. Em ambos os casos, o levante do mar de pessoas raivosas e mal-intencionadas foi estimulado pelos presidentes que, derrotados não aceitam o resultado das eleições.   

Não punir severamente as pessoas envolvidas no ato de selvageria ocorrido em Brasília pode perpetuar a instabilidade política, fragilizar a democracia. É necessário que sejam responsabilizados criminalmente, por isso, alegra-me que estas pessoas e quem as financiou estejam sendo identificadas, processadas e presas, sejam jovens ou idosos, estejam elas nas forças armadas, no congresso, no agro ou qualquer outro setor econômico.

Não baixemos à guarda, eles não merecem confiança! Chega de dar voz a lunáticos e malfeitores, que tentam justificar suas bandalheiras alegando estar defendendo o Brasil e a população brasileira das garras do comunismo. Narrativa, no mínimo digna de deboche!

Sobre conhecer a si mesma e ser compreendida

“Ser você mesmo, simplesmente ser você mesmo, é uma experiência tão incrível e totalmente única que é difícil convencer a si mesmo de que algo tão singular acontece com todo mundo”, escreveu a filósofa Simone de Beauvoir em sua biografia.

Temos partes de nós que são desconhecidas dos outros e muitas vezes até de nós mesmos.

Somos incompreendidos porque não há ninguém exatamente como nós. Somos únicos e portanto, ser incompreendido parece fazer parte da experiência humana.

Mas é fundamental perceber que não somos os únicos incompreendidos e que na mesma medida entendemos mal os outros.

Apesar de sermos mal compreendidos somos cobrados a ser nós mesmos em um mundo que está constantemente tentando fazer de nós outras pessoas. E a forma mais comum de desespero é não ser quem você é intimamente.

O filósofo Friedrich Nietzsche perguntou: “Como podemos nos encontrar novamente? Como pode o homem conhecer a si mesmo?”

O paradoxo de conhecer a si mesmo é que nunca termina. Apesar do esforço ser infinito, isso não significa que deva ser abandonado. Assim como viver uma vida totalmente virtuosa não é realista, devemos nos esforçar para trilhar o caminho do auto conhecimento. Como muitos empreendimentos valiosos, conhecer e entender a si mesmo é uma busca sem fim.

A realidade humana está sempre se expandindo, sempre mudando. Então, no que eu me transformo  e como eu me reconheço se estou apenas aderindo aos rótulos? É importante entender em quem estamos nos tornando, é importante entender nosso passado para que possamos nos ver numa perspectiva panorâmica, é importante assinalar qual é o eu do qual estamos tentando estar cientes, que está sempre em fluxo, sempre mudando.

Não podemos eliminar nossa solidão porque não podemos  eliminar nossa singularidade. Digo isso para justificar o meu propósito de viver cem por cento o que é minha essência e tentar ser minimamente compreendida a partir das minhas particularidades, do meu tempo e imperfeições.

Quanto melhor e com mais precisão expressarmos nosso estado interior, mais as pessoas nos entenderão. Meu objetivo implícito e explícito, é me libertar das correntes da expectativa e alcançar um estado de auto-realização, onde não exista barreira entre meus objetivos, pensamentos e capacidade de me expressar.

Às vezes, as barreiras entre nós e nossos objetivos são externas. Podemos considerar que temos barreiras técnicas, logísticas, raciais, políticas, familiares ou financeiras, entre outras, que nos impedem até mesmo de iniciar nossa busca interior. Por outro lado, podemos ter barreiras mentais internas e outras ansiedades que primeiro precisamos superar para alcançar nosso estado interior ideal.

Eles tem ódio, nós temos sonhos

Desde 13 de setembro do ano passado, dia da criação do grupo, faço parte dos 250 comunicadores da região centro-oeste engajados na campanha de Lula. No país, o grupo chegou a 7.800 pessoas, indicadas pelos 10 partidos que formaram a coligação para apoiar a chapa Lula-Alckmin. Lembro-me da primeira mensagem do presidente, em reunião virtual de boas-vindas ao grupo: “nós temos uma vantagem em relação aos robôs do adversário. Somos seres humanos e não queremos perder nossos sentimentos. Vamos colocar nas nossas mensagens aquilo que mais toca o ser humano, vamos colocar nosso coração para falar de amor, de esperança, de futuro. Transmitam muita solidariedade e fraternidade nas mensagens de vocês”.

Edinho, coordenador da campanha, organizou a rede de comunicadores, sobretudo para combater os robôs e fake news. Na primeira reunião virtual, a mensagem de orientação foi significativa: “Nós não vamos competir com a mesma estratégia do gabinete de ódio. Vamos nos organizar, mostrar força, se eles têm robôs, nós temos sonhos”. Com o manual de comunicadores nas mãos, íamos fortalecendo a comunicação de Lula e repostando as mensagens, os vídeos, sendo cada dia mais convencidos que o Brasil dos nossos sonhos precisa ser construído com muitas mãos.

Diariamente e algumas vezes por dia, éramos alimentados com as notícias da campanha, como estava o vira-voto nas redes e nas ruas, como estava repercutindo o desempenho do presidente nas grandes reuniões e nos debates. A reta final, os programas eleitorais, os aliados pelo Brasil afora, o entusiasmo internacional com a possível vitória, o orgulho de Lula pelo povo brasileiro, o respeito pelo Brasil. Nas ruas e nas redes até hoje sob o mantra é que devemos unir os divergentes para enfrentar os antagônicos.

Ao tempo em que nos alimentava a esperança, convivíamos com um presidente que foi um mau militar, preso por indisciplina e processado pelo exército por planejar explodir bombas em quartéis. Depois de 26 anos no Parlamento, com apenas dois projetos de leis aprovados, o deputado omisso, defendeu a tortura e os torturadores, agressivo com as mulheres, chamou uma deputada de ‘vagabunda’, virou presidente e continuou pregando o ódio e espalhando notícias falsas nos quatro anos de mandato. 

Hoje, a posse, diante de uma gigantesca mobilização das polícias do Distrito Federal e da Polícia Federal para garantir a segurança não só do presidente, mas também das delegações estrangeiras com 12 chefes de estado com presenças confirmadas e a população diversa, alegre que está sendo esperada na esplanada. Como disse o Ministro da Justiça Flávio Dino: “Pequenos grupos terroristas e extremistas não vão colocar as instituições da democracia brasileira contra a parede”.

No dia seguinte à posse os desafios: O novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva começará com o difícil desafio de reverter o isolamento e o desprestígio internacional e regional que marcaram a política brasileira nos últimos quatro anos. O desprezo do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro pela governança global produziu uma imagem vergonhosa para um membro do Conselho de Segurança da ONU. Lula precisa limpar a poeira das cadeiras abandonadas pelo governo Bolsonaro nas Américas, a começar pela União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e no mundo.

Em suma, o Brasil deve retomar as posições e princípios de convivência internacional, como o compromisso com a paz, os direitos humanos e o desenvolvimento, que nortearam ações dos governos brasileiros por muitas décadas, eliminando os vestígios das posições de Bolsonaro que fizeram do Brasil uma caixa de ressonância para as visões políticas da extrema direita.

São os gestos que imortalizam as pessoas

No livro “A Imortalidade”, Milan Kundera, consagrado escritor tcheco, fala do desejo das pessoas de permanecer na memória coletiva depois de desaparecer do mundo terreno, a verdadeira vida para muitos é viver no pensamento do outro. O autor diz que emitimos opiniões, exercemos atividades militantes para sermos notados, para termos nossa imagem fixada na memória dos outros. Os bens que impressionam não garantem a imortalidade, para permanecer na memória dos outros, temos que colocar encanto em tudo, tornar público o gesto, o sorriso, a sedução.  

O essencial, porém, é o que não pode ser dito, senão vivido. Para o autor, são os gestos que tornam as pessoas imortais. O que eterniza a personagem do livro, é um gesto, um aceno cheio de simbolismo e sensualidade de uma mulher de meia-idade, à beira de uma piscina. A expressão do gesto arrebatou o coração do autor e sustentou o romance. Contudo, Kundera pontua que o gesto não revela a essência da mulher, pelo contrário, “a mulher revela o encanto de um gesto”. 

De fato, as grandes narrativas têm sido substituídas por imagens memoráveis ​​perpetuadas na mente e no imaginário de milhares de pessoas, desde o cotidiano gesto da mão que entrega a rosa com amor, os arroubos gestuais dos discursos dos políticos até a imagem de Lionel Messi levantando a taça da copa do mundo. Nenhuma palavra dita por Messi ou pelo adversário Mbappé ou outros se sobrepõe as imagens que correram o mundo da espetacular final. Toda a preparação, a pressão, o alto desempenho dos jogadores foram projetados nas imagens capturadas. 

Não é preciso palavra para descrever a cena de Messi correndo desgarrado dos colegas da seleção para solitariamente se unir em abraço ao goleiro deitado na grama. As imagens reencarnam inevitavelmente ao longo da história, apesar da mortalidade dos indivíduos. 

O momento atravessado por notícias falsas, por promessas vãs, falácias contribui para reduzir a importância do discurso, das metáforas, do embate de ideias meramente auto afirmativas. Na vida política brasileira atual, faltou um gesto de solidariedade ou gratidão do presidente Bolsonaro para os apoiadores sentirem-se abraçados, acolhidos, para guardarem boa memória afetiva dos protestos e do presidente. Os apoiadores, expostos à sol e chuva na frente dos quartéis, seu líder, encolhido e recolhido no palácio, emburrado, emudecido, seco.

A base do eu não é o pensamento, a palavra, assim como os personagens de Kundera, precisamos construir imagens significativas se quisermos evitar o apagamento da nossa individualidade na mente dos outros.

Não esperava que o Supremo ficasse quieto

Não está em curso uma colisão contra a democracia brasileira. O que temos é um presidente que não acredita na democracia e um presidente eleito que acredita, são brasileiros de diferentes lados do espectro político que exibem antipatias e hostilidades recíprocas em níveis alarmantes. Não parece estar claro que uma identidade política anti-Bolsonaro não depende de vinculação prévia do cidadão ao Partido dos Trabalhadores. A distância ideológica de Bolsonaro é um dos pontos cruciais para muitos brasileiros terem se afastado dele e temerem que o Brasil continuasse nas mãos do grupo que governa o país até 31 de dezembro próximo. O coordenador do grupo de transição, vice-presidente Geraldo Alckmin, ao encerrar as atividades, atônito falou da bagunça generalizada que encontrou, apagão de dados, sistemas que deixaram de ser alimentados desde 2020.

Restaurar o consenso, o respeito pelas diferenças políticas, a esperança do maior número possível de brasileiros no novo governo é um propósito que deve ser severamente perseguido a partir de janeiro, essa é a aposta para conter o ímpeto dos políticos divisionistas, que estarão na oposição. Estamos vivendo um tempo de enfraquecimento dos laços partidários, do envelhecimento das práticas dos líderes políticos com mandatos, baixo nível de confiança na política como forma efetiva e única de diminuir as desigualdades sociais, não estamos sós, como país, vivendo o drama vergonhoso de ter parcela da população (que seja insignificante, numericamente) pedindo retorno da ditadura militar. Chega, né?

Enquanto o presidente derrotado destilava ataques à justiça, à mídia e ao sistema eleitoral, o Ministro Alexandre de Moraes reformulava seu trabalho em torno da proteção da democracia brasileira, autorizado pelos novos e amplos poderes que lhe foram concedidos desde 2019. A cada pequena erosão das normas democráticas, surge a figura do Ministro Alexandre de Moraes, para restaurar às fissuras, chamando à responsabilidade os que covardemente incitam e se escondem atrás dos indígenas (por serem inimputáveis), dos caminhoneiros, por serem seus empregados, das donas de casa, por serem suas esposas. Ou você já presenciou um grande empresário ou parlamentar dormindo em barraca na frente de algum quartel, aqui ou em Brasília?

O dinheiro de poucos tem sustentado a arruaça de ‘bois de piranha’ que viajaram para Brasília para fortalecer a ebulição da radicalização, queimando carros aleatoriamente pelas ruas, dificultando as perspectivas de consenso democrático. Essa semana foram expedidos 100 mandados de busca e apreensão contra alguns acusados de incitar e financiar atos antidemocráticos. A esses, a sugestão seria a leitura de obras que relatam as atrocidades cometidas pelos militares na época sombria do fechamento do congresso, da existência dos centros de tortura, do DOI-Codi. Então, chega de proselitismo, de pregação de falsas crenças. O TSE pós eleição tem tarefas a cumprir, o Ministro Alexandre de Moraes não pode nem deve ser o guardião solitário da nossa democracia.

Porém, por ora, tem servido a punição rigorosa daqueles que tentam tumultuar o processo eleitoral democrático, nenhum passo atrás rumo às trevas, nenhuma leniência com, seja lá quem for, que estiver atravancando nosso caminho para inaugurar um novo tempo no nosso país.  

Na política eno futebol, raramente perde quem deu o seu melhor

Temos que nos sentar com algum desconforto se quisermos ter uma coexistência pacífica e civilizada uns com os outros. Ser continuamente consumido em ver o outro como errado e fracassado nos impede de experimentar uma gama mais ampla de relacionamentos, de fazer novas descobertas e talvez também de nos maravilhar com a diversidade da vida e aprender com as derrotas.

Desarmar o espírito não é fácil, mas que arrogância desmedida é essa que nos faz crer que nascemos fadados à vitória, sempre? Milhares de pessoas não conseguiram absorver e superar a derrota na política e agora, no futebol. Há pessoas que não sabem o que é uma derrota, porque se recusam a reconhecê-la e vivem em estado de negação. Na verdade, aquele que nunca foi derrotado talvez nunca tenha, de fato, lutado.

Há uma tradicional frase que diz que política, futebol e religião não se misturam. Na prática, não é assim. Política e futebol se misturam há muito tempo e isso voltou latente durante a ditadura militar brasileira, quando o presidente Castelo Branco determinou intervenção dos militares na Confederação de Futebol. Em 1970, o Presidente Médici, que era apaixonado por futebol, tentou interferir na escalação da seleção brasileira, porque não gostou da convocação de Dadá Maravilha, o que levou o técnico João Saldanha a rebater corajosamente: “ele escala o ministério dele, que a seleção escalo eu”. João Saldanha mais tarde foi demitido, dizem, como ato de retaliação de Médici

Um sopro de esperança contra a ditadura militar nasceu dentro do grandioso clube do Corinthians. Atento ao cenário da época, quando a Ditadura Militar começava a perder força, o sociólogo Adilson Monteiro Alves decidiu que um movimento a favor do voto popular e da democracia deveria começar dentro do Parque São Jorge. E ao lado dos craques, Sócrates, Casagrande e Wladimir, iniciaram o movimento chamado Democracia Corinthiana. O nome foi criado pela lenda da publicidade brasileira, Washington Olivetto, que estampou frases de efeito nas camisas do time, com mensagens pedindo o restabelecimento das eleições e a volta da democracia no país. A democracia Corinthiana apoiou e vestiu a camisa da campanha das ‘Diretas Já’, idealizada por Dante de Oliveira. 

Também em plena ditadura, o ex-presidente do Flamengo Márcio Braga, ao candidatar-se anunciou na imprensa que a democracia brasileira começaria com eleições livres, sem interferência da diretoria do Flamengo. Novamente o presidente Médici tenta interferir, mas Márcio Braga venceu o candidato apoiado pelo presidente.

Pelo mundo afora, políticos populistas como o italiano Silvio Berlusconi, acreditaram na conexão entre política e futebol, como uma forma de legitimar a entrada dele na política e adotou como estratégia de campanha o lema de fazer com que os italianos falassem de política tanto quanto eles falavam sobre futebol.

Recentemente, no conflituoso momento pós-eleições, quando os manifestantes conservadores trancaram a Rodovia Presidente Dutra, no Rio de Janeiro, pedindo intervenção militar no país, foi a destemida torcida organizada do Corinthians que desobstruiu a estrada. Em São Paulo, a torcida liberou a marginal Tietê e levantou faixas com frases em favor da democracia brasileira.

Na prática da política e do futebol se leva em conta a preparação. Anos talhando, o político, o discurso e o jogador, o preparo físico e ambos, trabalhando suas habilidades. A política é coletiva, o futebol também. O time tem que estar coeso e em ambos os casos, há adversários, igualmente constituídos, treinados, almejando a mesma posição. Alguém vai perder e muito raramente perde quem deu o seu melhor!

Coisas que devemos deixar para trás

Final do ano sempre foi um período de reflexão sobre o que vivemos, onde avançamos, nos decepcionamos, o que aprendemos e sobretudo sobre o peso que não devemos carregar para o ano seguinte. Vivo um momento de emoções coletivas, portanto, minhas alegrias e preocupações são as mesmas de milhares de brasileiros; quero um Brasil melhor, exalando humanidade nas ações do governo, preocupado com a fome, com a intolerância, com a violência política.

Assim como milhares de brasileiros tenho me preocupado com o estado da democracia do Brasil e o risco de um retorno aos dias sombrios do regime militar, que já vivenciamos. Embora com solavancos, sem dúvida, até agora a democracia brasileira tem resistido bravamente e resiliente, apesar do clima político tensionado, que se inaugurou desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que tem procurado abertamente causar danos à democracia, contudo, até agora não conseguiu infligir danos irreparáveis, até porque o Supremo Tribunal Federal, vigilante, tem tentado suprir as falhas mais flagrantes do próprio governo.

O presidente atacou veementemente às instituições democráticas, com ataques contínuos dirigidos ao judiciário e até pedidos para fechar o congresso. A relação de Bolsonaro com o STF é conturbada desde o início do governo. Certa vez, durante uma reunião de gabinete o presidente declarou que queria enviar tropas para fechar o STF, disse que não estava blefando e estava pronto para tomar medidas radicais se os ministros dificultassem sua vida, mas foi convencido a se conter do arroubo ditatorial por assessores próximos. Abandonemos esse tempo de desrespeito às instituições!

A imprensa tem sido outro alvo de críticas nos quatro anos do governo e acusada de fazer campanha contra o Brasil. Diante do ataque presidencial, os donos dos principais veículos da grande mídia e as três associações nacionais do setor, lançaram um manifesto reafirmando o compromisso com o Estado de Direito e as decisões soberanas das eleições, coordenadas por “uma Justiça Eleitoral cuja atuação tem sido reconhecida internacionalmente”. Até agora, Bolsonaro não conseguiu intimidar a mídia e o debate público no Brasil. Abandonemos a prática perversa de desacreditar a imprensa e constranger seus profissionais.

A saúde pública foi negligenciada antes, durante e depois da pandemia. No início do seu governo, o presidente encerrou o programa “Mais Médicos”, que supria a necessidade de atendimentos médicos nos municípios do interior do Brasil. Na Pandemia, ignorou estudos científicos, regrou orçamento e debochou de pessoas morrendo. Diminuiu gradativamente os investimentos no custeio do Sistema Único de Saúde (SUS), como resultado, hospitais, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) estão sucateados e com carência de profissionais qualificados e exames. Abandonemos o tempo obscuro de negligência com a saúde pública.

Com mais armas e munições do que nunca à disposição dos brasileiros, disseminação de notícias falsas e palavras de ordem que incitam o ódio, as memórias dos tempos duros do regime militar opressivo estão começando a desaparecer, fazendo surgir uma certa nostalgia da ditadura, levando pessoas para frente dos quartéis pedindo golpe militar.  O pior é que o retorno à ditadura é uma possibilidade real na mente de muitos brasileiros esclarecidos e da maioria, de alienados.  Vamos enterrar de vez os resquícios da ditadura militar e calar a voz dos ensandecidos que disseminam ódio e fazem apologia ao crime.  

É preciso calar a voz e muita reza para ‘desdemonizar’ o coração de pessoas como o militar, lotado no palácio do planalto que gravou um áudio incitando colegas a dar um tiro na cabeça de quem faz o “L”.

Aliás, essa ideia de matar opositor é alimentada pelo atual presidente desde os anos 1990, quando numa entrevista vociferou: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC (Fernando Henrique Cardoso, que era o presidente), não deixar ele pra fora não, matar. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”

Vamos deixar para trás o governante que promoveu tudo isso que citei acima.  

Não seja um mau perdedor

Há uma realidade que não pode ser ignorada. Nenhuma manifestação violenta, vigílias bizarras de pessoas com celular na cabeça e lanterna ligada para enviar sinais para extraterrestres, marchas nas frentes dos quartéis, pneus ardendo em chamas para bloquear estradas, teria acontecido se o presidente Bolsonaro não fosse um mau perdedor. O fato de haver sumido, ter deixado passar tão longo tempo sem uma palavra sequer aos seus eleitores, sem declarar aceitar o resultado soberano das urnas, mostra o quão pouco ele se importa com a governabilidade do país, com o movimento conservador, patriotismo, com a política e com seus eleitores.

  As manifestações violentas e antidemocráticas não teriam acontecido se o presidente Bolsonaro tivesse vislumbrado o tamanho da força que teria para comandar a oposição no país. Mas conscientemente escolheu o silêncio perigoso como senha para demonstrar sua crença nessas teorias da conspiração. Ele é, por isso, moralmente responsável pelos dias de caos e violência que vivemos. Deixando claro para os que se fizeram de desentendidos, que violência não é apenas um ato que deixa mortos e feridos.

Bolsonaro perdeu uma eleição que vários institutos de pesquisa anunciaram que ele perderia, não foi uma surpresa, não deu zebra. Perdeu para um ex-presidente da República que deixou o governo, após dois mandatos com índice de aprovação altíssima, superior a 80%, sem contar que o cidadão Bolsonaro, extremista, indisciplinado e rude foi um adversário potente contra o Presidente Bolsonaro, que tentou a reeleição. Perdeu e espelhou-se em Donald Trump! Ele e seus seguidores desafiaram os resultados de maneira semelhante a Trump e seus partidários republicanos após a eleição presidencial de 2020 nos EUA. Igualmente argumentaram, sem provas reais, que a eleição havia sido fraudada por todos os tipos de métodos, desde a fraude cibernética, até a falha no número de patrimônio das urnas. 

O jornal americano The New York Times, logo após as eleições brasileiras, publicou um artigo dizendo que o que acontece em Washington nem sempre fica em Washington, que Trump deixou como legado, um manual sobre como envenenar a política com desinformação, mentiras e tentar desacreditar os resultados eleitorais e as transições pacíficas de poder e o manual está sendo exportado e implantado além dos Estados Unidos e se tornando uma ameaça transnacional à democracia.

Disse ainda que os métodos de Trump foram rigorosamente adotados no Brasil por Jair Bolsonaro, que divulgou notícias falsas, desinformação durante sua presidência, semeou desconfiança no sistema eleitoral nos últimos anos e, por último tentou desacreditar o processo eleitoral depois de perder a eleição para Lula no mês passado. Os métodos de Trump foram repetidos na Colômbia nas eleições de maio, quando o candidato da direita radical inspirado no ex-presidente americano perdeu à eleição e contestou a contagem de votos. Como aconteceu nos EUA, a sustentação frágil da denúncia deu em nada. O presidente eleito, Gustavo Petro tomou posse em 7 de agosto.

Até o momento Bolsonaro não reconheceu a derrota, não cumprimentou o vencedor, não seguiu nenhum rito, rasgou o protocolo. Insiste e aposta na tese mal ajambrada que a eleição foi roubada em vários estados, no segundo turno e apenas nas urnas que ele teve menor votação. Ao cair na toca do coelho das teorias da conspiração de Trump, Bolsonaro sabotou o próprio final do mandato, delegou responsabilidades inerentes ao seu cargo de presidente nas semanas que não foi trabalhar. Agarrou-se ao seu partido, PL, para assumir a peça jurídica da anulação de parte dos votos do segundo turno, como resposta, o partido levou uma multa salgadíssima do Tribunal Superior Eleitoral por haver acionado a justiça de forma irresponsável (litigância de má-fé).

Parafraseando o ministro Barroso, diria que eu humanamente perdi a paciência!