Os sete sapatos sujos

Ler o extraordinário escritor moçambicano Mia Couto causa-me certo desconforto. São histórias de pertencimento a um chão duro, um país pobre, uma terra sonâmbula e é nesse cenário que ele escreve livros, textos e palestras, colocados em palavras para expressar que os desafios são infinitamente maiores que a esperança e ainda assim, ciente de que dar futuro a um povo custa muito dinheiro e vontade, ele falou da dificuldade que temos de pensar em nós mesmos como sujeitos, como ponto de partida e como destino final dos nossos sonhos numa bela palestra, que  assisti sem respirar na Universidade de Brasília, no ano de 2019. Mia falou dos sete sapatos sujos que precisamos descalçar e deixar na soleira da porta, ao adentramos o mundo que queremos ter.

O primeiro sapato a ser deixado do lado de fora da porta é a ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas, do sistema, da guerra, do preconceito, da geografia. Certamente muitas pessoas nos causaram sofrimentos, mas a responsabilidade de livrar-se deles sempre residiu dentro da casa, escondido num longo processo de desresponsabilização. Olhamos para nós mesmos com benevolência mas cobramos dos outros que nos olhem com dignidade.

O segundo sapato é a ideia de não enxergar o êxito como resultado do esforço, do trabalho, do investimento no longo prazo. Atribuímos o bem e mal que nos acomete à forças invisíveis que comandam o destino.

O terceiro sapato é o preconceito de que quem critica é um inimigo, é a intolerância com quem pensa diferente.  Muito do debate de ideias é substituído pela agressão verbal e demonização de quem pensa de modo diverso.

O quarto sapato é a ideia que mudar as palavras muda a realidade, viver à reboque de preocupações de ordem cosmética. Mudanças de comportamento importam mais do que banir o uso de determinadas palavras, consideradas preconceituosas do dicionário.

O quinto sapato é a vergonha de ser pobre e o culto das aparências expressado na atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de prosperidade, que acaba reforçando a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferencia dos mais pobres. A arrogância e o exibicionismo são emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

O sexto sapato é a passividade perante a injustiça. Estamos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra nós, contra os nossos, contra a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros, como se persistisse em nós zonas silenciosas de injustiça, onde certos delitos permanecem invisíveis.

O sétimo sapato é a ideia de que para sermos modernos temos que viver como os outros, temos que criar familiaridade com o mundo virtual, com os sinais do que é internacional. Aceitamos este apelo à imitação porque sentimos vergonha de sermos quem somos.

Mia Couto provoca os políticos, a cultura herdada e nunca recriada, mas provoca sobretudo as pessoas que se debulham em lamúrias.

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